Opinião

PL que iguala aborto a homicídio é filho bastardo de muitos pais

Por covardia e interesses políticos e eleitoreiros, o Brasil pode condenar à morte as mais vulneráveis entre as mulheres

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e o deputado federal José Guimarães (PT-CE), líder do governo (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
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O avanço do PL1904/24, que equipara a homicídio o aborto tardio, é mais uma evidência do avanço fundamentalista religioso no Brasil. Mas não só. Trata-se de filho maldito de vários pais, que jamais teria ido adiante sem a anuência e o alinhamento a interesses nada religiosos.

Primeiro, os de Arthur Lira, que cedeu à pressão em troca de fazer o seu sucessor na presidência da Câmara. Lira, com uma retórica desonesta, minimiza a questão, ignorando que o próprio Código Penal Brasileiro não estabelece prazos para a realização do aborto legal. 

O caso expõe também a fraqueza do governo, espremido entre um Congresso esfomeado, uma oposição radicalizada e uma elite que exige cortes de gastos e privilégios, exceto os próprios. A insensível declaração de José Guimarães, afirmando que aquele não era ‘assunto de governo’, o desinteresse de Lula, limitado a vagas declarações quando questionado, as manifestações tardias de Janja e das ministras e a displicência da bancada petista na Câmara, que faz esforço para ‘suavizar’ o projeto, refletem uma complacência inaceitável.

O deputado Sóstenes Cavalcante diz que a proposta é um “teste” para o compromisso do presidente com os evangélicos. Há ainda quem veja uma tentativa de sabotar o governo, colando-lhe a pecha de ‘abortista’ diante da mais branda crítica.

Mesmo tomando ambas como verdade, capitular não melhora a já desgastada relação entre o petismo e os religiosos, mas decepciona e enfraquece ainda mais a base de apoio que resta. Se o Brasil não apoia a flexibilização da legislação sobre o aborto, também é verdade que a maioria da população é contra a criminalização dos casos já previstos em lei. 

Há pouco mais de seis meses, a CartaCapital publicou o relato de Alice, uma jovem periférica presa em flagrante dentro de uma clínica clandestina enquanto tentava interromper uma gestação indesejada e forçada a manter a gravidez. Apesar de todo o trauma e da humilhação,  contudo, ela afirma que recorreria de novo ao procedimento se fosse preciso.

Nesse caso, sua pena seria maior do que a de casos como o do homem preso por abusar da própria filha em uma UTI de hospital, caso revelado pelo programa Profissão Repórter, da TV Globo. Ou à do deputado Chiquinho Brazão, acusado ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco. 

Meninas menores de 14 anos são as principais vítimas de estupro no país. Ao menos 38 engravidam diariamente. Também falta acesso a cuidado médico: menos de 4% das cidades brasileiras têm um serviço de aborto legal. Ao invés de protegê-las, o Estado propõe uma crueldade institucionalizada, perpetuando ciclos de violência e desespero. Na prática, o que fará o PL 1904/24 é obrigar vítimas a terem filhos de seus próprios estupradores. 

Crianças, adolescentes e portadoras de deficiências vítimas de estupro, cuja descoberta da gravidez tende a ser mais tardia, podem mesmo ser equiparadas a homicidas? Por covardia e interesses políticos e eleitoreiros, o Brasil pode condenar à morte as mais vulneráveis entre as mulheres.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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