Economia

Renda, riqueza e financiamento dos déficits

A possibilidade de financiamento do déficit deve considerar como pressuposto geral a institucionalidade do sistema brasileiro

Prédio do Banco Central, em Brasília
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No contexto da pandemia e de seus efeitos sobre a economia, um dos principais aspectos a ser equacionado é de como lidar com um déficit primário inusitado – hoje, estimado em 8% do PIB e que deverá aumentar – e a pergunta crucial é como financiá-lo: por expansão monetária quando o Bacen adquire diretamente títulos do Tesouro ou por colocação desses títulos, no mercado primário? 

Há vários aspectos a considerar na pergunta, inclusive o significado mais preciso de cada uma das formas de financiamento. Há também aspectos institucionais particulares do sistema monetário-financeiro-fiscal brasileiro, e sobretudo, aspectos da conjuntura dentre os quais se ressalta a elevada incerteza, a crescente preferência pela liquidez e a abertura financeira da economia, num contexto de crescente aversão ao risco dos mercados globais nos quais, o real não é uma moeda líquida.

Primeiro, cabe alertar que a pergunta, certamente, teria menos pertinência em períodos de normalidade, pois o financiamento monetário de gastos públicos pelos Banco Centrais questiona regras importantes de funcionamento da economia capitalista. No caso, o fundamento de que o Estado deve gastar o que arrecada e caso necessite mais recursos deve emitir dívida, para evitar que se aproprie de parcela da renda e da riqueza que vá além do acordo subentendido nas regras de tributação. Mas, em razão da excepcionalidade do momento, e sobretudo, da necessidade de ampliar benefícios sociais e sustentar a renda das famílias, cabe considerar o financiamento monetário como uma alternativa importante, inclusive como mecanismo de barateamento deste financiamento e, portanto, de atenuação da expansão da dívida.

A possibilidade de financiamento do déficit deve considerar com pressuposto geral a institucionalidade do sistema brasileiro, em particular o regime de metas, o grau de abertura financeira e por último, mas, não menos importante, as operações compromissadas. Estas últimas, a despeito de constituírem uma prática comum dos bancos centrais e dos mercados interbancários em todo o mundo, as denominadas “repo”, que são operações de compra e venda com compromisso de recompra/revenda e por tempo determinado, não possuem nos outros países a escala brasileira, onde cerca de 20% da dívida pública bruta, é constituída de operações compromissadas, constituindo-se num importante instrumento de captura da liquidez e de financiamento de curto prazo da dívida pública.

O financiamento monetário tem a seguinte sequência: o Bacen compra diretamente títulos do Tesouro, e este último, via sistema bancário, transfere o dinheiro às famílias, parte dos quais permanece sob a forma de depósitos à vista e parte é sacada na forma de papel moeda. Completa-se assim o circuito da renda, com o recebimento dos benefícios pelas famílias.

Olhando a questão da ótica dos ativos financeiros, ou da riqueza, temos que o Tesouro se financiou com o Bacen ao vender-lhe títulos públicos. Este emitiu moeda e pagou o Tesouro, ficando com os títulos da dívida em carteira. Para viabilizar o pagamento das famílias, o Tesouro transferiu moeda para os Bancos que creditaram as famílias, mas exatamente por isto ficaram com as reservas bancárias ampliadas. Uma parcela dessas reservas é esterilizada por recolhimento de compulsório – um percentual sobre os depósitos à vista. De qualquer modo, e isto é muito importante, da perspectiva da riqueza, há nesse momento uma liquidez ampliada no sistema, sob a forma de reservas bancárias.

O destino dessas reservas é crucial e nessa decisão interagem vários elementos relevantes da política monetária, da institucionalidade e da disposição dos mercados. Assim, se a preferência pela liquidez dos bancos não se altera, de forma que cobram o mesmo juro para se desprender da liquidez, ofertarão a moeda no interbancário ou ao Bacen. Se não houver um comprador dos títulos a uma taxa prévia, a taxa de juros cairá.

E aí entra o Bacen, a política de metas de inflação e a meta de juros. Para manter tudo como dantes (evitando que a taxa de juros caia abaixo da meta da Selic, estipulada pelo Copom com vistas a perseguir a meta de inflação), o Bacen entra no mercado comprando moeda à taxa de juros que estipular. Essa compra ou enxugamento do excesso de moeda do sistema é feita via operações compromissadas. Vale dizer, o Bacen usa sua carteira de títulos públicos, e os vende com compromisso de recompra em prazos curtos (geralmente poucos dias ou semanas).

A alternativa descrita acima constitui apenas uma das várias alternativas possíveis, a mais próxima da reprodução do status quo, mas há outras possibilidades. Assim, coeteris paribus, se a preferência pela liquidez se alterar, os bancos exigirão juros distintos para ceder a moeda; o Bacen por sua vez, pode sancionar uma variação da taxa de juros e captar a liquidez a taxas de juros distintas, ou mesmo alterá-la em consonância com a política de metas. Importante notar que como se trata de um mercado de liquidez e, portanto, de moedas, tanto as taxas de juros são menores, quanto as flutuações da preferência pela liquidez são menos intensas. Os limites para que essa liquidez seja captada a taxas de juros cada vez menores estarão dadas pela meta de inflação – uma variável que pode ser esquecida no ambiente deflacionário – e, principalmente, pela taxa de juros externa ou seja a paridade descoberta da taxa de juros. Se a taxa doméstica cair abaixo dessa paridade, o processo de esterilização ocorrerá por compra de dólar e se resolverá ou no aumento da sua cotação, i.e., desvalorização do real ou na perda de reservas, i.e., fuga de capitais.

Antes de sumarizar os resultados do financiamento monetário (direto) cabe chamar atenção para um aspecto que a despeito de não ser crucial, tampouco é irrelevante. Como regra geral, as análises sobre financiamento dão pouca importância ao papel moeda em poder do público como componente da base monetária e dos meios de pagamento. De acordo com os dados do Bacen, no Brasil eles representam a maior parcela dos meios de pagamento vis-à-vis os depósitos à vista e esta proporção tem permanecido relativamente constante nos últimos anos. Uma vez sacado dos bancos – com cartões, por exemplo – um percentual desse papel-moeda não voltará ao sistema bancário sob a forma de depósito à vista, refletindo a ainda baixa bancarização da população. Ou seja, essa parte da moeda sai do âmbito do sistema bancário – é como se o sistema perdesse reservas. Isso na prática significa que parte da expansão monetária é esterilizada reduzindo o montante a ser capturado pelas operações de liquidez.

Do ponto de vista do processo de financiamento monetário, cabem algumas observações. O financiamento da dívida pública foi realizado previamente, fora do mercado, na relação Bacen-Tesouro. Assim, cabe observar que a captura do excesso de moeda não é uma operação de ampliação da dívida pública – ela usa uma parte desta dívida na carteira do Bacen – mas de regulação de liquidez. No caso brasileiro, está tudo misturado nas operações compromissadas, o que torna a distinção mais difícil, mas conceitualmente elas são diferentes. De qualquer modo, o mínimo que se pode dizer em relação às reservas bancárias que viraram operações compromissadas é que elas são uma “dívida pública” de baixíssimo custo.

Qual o resultado final, coeteris paribus, do financiamento monetário? Uma expansão da liquidez fundada no financiamento da dívida pública “fora do mercado”, encarteirada no Bacen e emitida a menor custo e com um gerenciamento melhor da curva de juros, sobretudo em momentos de muita volatilidade. Ademais, como o Bacen comprou a dívida com expansão monetária e num segundo momento usou parte dessa dívida para gerenciar a liquidez, no cômputo geral terá lucro com os títulos do Tesouro, os quais transferirá, no futuro, para o seu controlador, baixando mais ainda o custo da operação de financiamento monetário.

No financiamento indireto, ou seja, por emissão inicial de títulos no mercado, há diferenças importantes. Desde logo, porque as quantidades de moeda e títulos, no momento primeiro, não são alteradas, o que pode produzir resultados ruins, dado o tamanho do déficit a financiar e as possíveis flutuações da preferência pela liquidez. Ou seja, é uma operação que se inicia no âmbito da riqueza financeira e não da renda. Antes de realizar o gasto, o Tesouro tem que se financiar com os mercados, i.e., bancos e demais instituições financeiras.

Esta emissão de dívida adicional para financiar os gastos, pressiona a liquidez do sistema, em particular as reservas bancárias. Assim, os agentes que estão dispostos, mudam seu portfólio na direção de menos moeda e mais títulos públicos. Contudo, como não há aumento prévio de liquidez e a base monetária está constante, e tampouco estamos supondo, para efeito de comparação com a alternativa anterior,  uma alteração na preferência pela liquidez, isto induzirá a mudanças relevantes de portfólios, e certamente pressionará a taxa de juros, dos títulos privados e públicos, além da sua realocação.

Uma vez vendidos os títulos, o gasto e sua trajetória são semelhantes à do financiamento monetário. O Tesouro transfere moeda para o sistema bancário que a distribui para o público via depósitos à vista e papel moeda. Note-se que as reservas devem ser recompostas no nível prévio ao da venda de títulos. Aqui, há mais dois efeitos que vão na direção de encurtar ainda mais essa liquidez do sistema: o recolhimento do compulsório e a esterilização de parte das reservas pela transformação de depósitos à vista em papel moeda. Mesmo com a preferência pela liquidez constante isto obriga o Bacen a injetar moeda no sistema, comprando parte da dívida pública emitida inicialmente. Dessa forma ao emitir moeda, um passivo sem remuneração, diminui o custo do conjunto da dívida.

Uma comparação entre as formas de financiamento do déficit, por expansão monetária inicial ou por títulos vendidos no mercado, indica uma superioridade da primeira, considerando as características do momento atual, de grande expansão do déficit, acompanhado de recessão e deflação e de aumento da preferência pela liquidez. Uma primeira vantagem evidente decorre do fato de a primeira forma implicar expansão monetária no momento inicial. Num momento de contração da liquidez e aumento da sua preferência esta é uma vantagem evidente. Por sua vez, ampliar o financiamento por títulos no mercado sem expansão monetária prévia provavelmente elevará a taxa de juros dos títulos públicos e estressará os mercados de títulos privados.

A composição das dívidas também favorece a opção do financiamento por emissão monetária, na medida em que nesse caso ela será composta predominantemente de operações compromissadas, que pagam uma taxa de juros menor e estão menos suscetíveis às flutuações da preferência pela liquidez. E isto é verdadeiro, mesmo que a taxa básica de juros (Selic) não se altere. Será distinto o caso do financiamento por títulos vendidos de forma permanente aos bancos ou ao mercado, sem expansão monetária prévia. A margem de escolha, tanto do ponto de vista de taxas de juros quanto de prazos será mais reduzida, nesse caso. Seria uma proeza financiar essa dívida adicional no mercado, sem alteração das taxas de juros. Todavia, mesmo se isto fosse possível, haveria um diferencial de custo desse perfil de dívida ante aquele resultante do financiamento monetário.

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