Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Todos esses cachorros que me ensinaram a viver

Voltei a ter paixão por cães não faz muito tempo. Quando minhas filhas saíram de casa e surgiram na vida delas a Cher e a Shakira

Nélida Piñon com seu cão (Foto: Arquivo pessoal)
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O primeiro foi Joli, um cachorrinho branco que todos diziam ser da raça lulu. Era assim que chamavam. Todo cachorrinho branco e pequeno era da raça lulu. Joli adotou o meu pai e só obedecia a ele. Quando o velho ia dormir, logo depois do boa noite do Heron Domingues no Repórter Esso, Joli o acompanhava e ficava ali ao lado dele. Quando minha mãe, já com os olhos pregando de sono, resolvia ir pra cama, era uma novela. Só conseguia alcançar o colchão de molas com uma vassoura na mão, domando Joli que rosnava sem parar.

O cachorrinho ia todas as manhãs de domingo ao Mercado Central, no centro da cidade, assistir à missa com o meu pai. E lá se perdeu inúmeras vezes. O meu pai dava uma geral pelos corredores e nada de Joli. Ia embora pra casa na certeza de que dois, três dias depois ele estaria de volta ao bairro do Carmo, após muitas caminhadas e algumas aventuras. Chegava exausto, marrom de poeira, às vezes arranhado de brigas e amor.

O segundo foi Tupi, marrom escuro, tinha as sobrancelhas e a ponta do rabo creme, me lembro bem. Tupi, diziam, era uma mistura de lulu com vira-lata. Não sei como, conseguia passar por uma fresta no portão da garagem e alcançar a rua, onde aprontava. De tempos em tempos, uma cadela de rua aparecia com cinco, seis cachorrinhos, todos a cara de Tupi.

No início dos anos 1960, ele foi parar em Brasília, para onde fomos construir a capital federal. Uma viagem longa de Rural Willys, três dias na estrada desviando da ponte que partiu, perto de Paracatu. Em Brasília, ainda puro pó, ele se esbaldou no acampamento onde fomos morar. Caçava ratos e costumava dar pegas em preás como ninguém. Se assustava com o canto dos carcarás que sobrevoavam o acampamento no bairro do Cruzeiro, mas não se intimidava. Quando um baixava o voo ele latia e a ave remetia.

Brasília construída, Tupi voltou para Belo Horizonte e foi numa manhã de nossas férias que veio a notícia. Um jipe passou por cima dele, na porta da nossa casa. Tupi ainda respirou algumas horas, deitado em cima de uma tábua na lavanderia da nossa casa, até que, de repente, seu coração parou.

Aí veio a Pink, uma pequinesa, no auge da moda dos cachorros pequineses. Pink tinha um pelo marrom claro, sentia muito calor e vivia deitada com a barriguinha encostada nos assoalhos frios da casa. Sua cara era de cão ranzinza e ela era mesmo meio ranzinza, a menos carinhosa de todos. Foi ao Rio de janeiro inúmeras vezes, a primeira dos nossos cachorros a viajar de avião.

Na caixa de retratos em preto e branco da família, ela é uma autêntica vedete posando nas areias de Copacabana. Pink tinha medo de entrar no mar, fugia das ondas. Gostava de ficar debaixo da sombrinha colorida que protegia a brancura de nós, mineiros. Comia de tudo, osso de frango, costelinha de porco, feijão tropeiro, milho cozido, arroz de forno, até lamber Eskibon ela lambia.

Quando fui-me embora do Brasil, perguntava por Pink em todas as cartas que escrevia. Recebia fotos dela em Paris constantemente. Em quase todas as fotografias que chegavam do Brasil em envelopes verde e amarelo, tinha uma foto da família e Pink sempre estava lá, como uma donzela fazendo pose pro clique. De repente, ela sumiu das fotos e eu não tive coragem de perguntar o motivo.

Voltei a ter paixão por cachorros não faz muito tempo. Quando minhas filhas saíram de casa e surgiram na vida delas a Cher e a Shakira. De tempos em tempos passam uma pequena temporada aqui conosco. Adoram essa nossa casa porque aqui não é só ração. Escondido, ganham pedacinhos de queijo Minas light, banana, fatias de peito de peru, lasquinhas de manga verde e até uma rodela de paio tiramos da feijoada e damos pra elas.

Essa semana, recebi uma mensagem de voz da Nélida Piñon, contando que vai escrever um livro chamado “Gravetinho, o Imperador”. Gravetinho era aquele cachorrinho que ficava olhando fixo pela janela da casa de Nélida na Cidade Maravilhosa, tentando alcançar o infinito. A autora de “A República dos Sonhos” olhava nos olhos dele e pedia:

– Gravetinho, por que não ensina-me a viver?

Respondi sua mensagem, enviando uma foto da Cher e outra da Shakira, que nem são minhas, mas são, porque já descobri todos os seus segredos, suas manias, suas manhas, já decifrei todos os seus olhares para o infinito.

Na terceira mensagem do dia, Nélida contou que cachorro na sua casa tem nome e sobrenome e me enviou uma foto da Suzy Piñon, “com suas orelhas enormes, portentosas”, e da Pilara Piñon. Pilara é aquela que Nélida levou até a Academia Brasileira de Letras para fazer um tributo a Machado de Assis, dono dos versos “Lembra-me que, em certo dia/Na rua, ao sol de verão/Envenenado morria/Um pobre cão/Arfava, espumava e ria/De um riso espúrio e bufão/Ventre e pernas sacudia/Na convulsão/Nenhum, nenhum curioso/Passava, sem se deter/Silencioso/Junto ao cão que ia morrer/Como se lhe desse gozo/Ver padecer.”

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