Justiça
Um tribunal como o Carf é cabível no Estado Constitucional de Direito?
Único no mundo em que “o infrator é também juiz” o Carf serve, na prática, para encobrir sonegações bilionárias e vedar o acesso dos credores de tributos ao Poder Judiciário
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Este artigo é a síntese de um parecer cujo núcleo é mostrar que o Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais no Brasil (CARF) é inconstitucional porque foi desenhado com a razão de um Tribunal de Exceção – concebido para bloquear a aplicação das leis tributárias, estimulando sonegações bilionárias – gerando uma profunda desigualdade perante a lei em favor dos contribuintes infratores.
O CARF é órgão do Ministério da Fazenda – não previsto na Constituição atual e criado por lei anterior – com competência para decidir sobre as dívidas tributárias, tendo duas instâncias recursais após a confirmação dos lançamentos do fisco. Dos 130 conselheiros, metade é indicada pelo governo e a outra metade por cinco confederações patronais (comércio, indústria, bancos, agricultura e transportes). As suas decisões não podem ser revistas pelo Poder Judiciário!
Lei de 2009 formalizou o voto de minerva pelos presidentes das turmas entre os nomeados pelo governo. Mas em 2020, uma MP radicalizou a inconstitucionalidade do CARF: I) suprimiu o voto de minerva; II) inseriu a regra “em caso de empate pro devedor”; III) vetou o acesso posterior ao Poder Judiciário. Três absurdos: retirou o Estado de um julgamento final sobre o qual ele é principal interessado como representante do interesse geral; outorgou o desempate aos representantes dos empresários privados. Constituiu assim um Tribunal, aparentemente público, onde o próprio Estado é bloqueado no seu direito subjetivo de acesso à Justiça na representação do interesse geral.
O novo governo editou MP em janeiro, com validade até 02 de abril, reintroduzindo o voto de qualidade e o direito de acesso ao Poder Judiciário. Em face do anúncio do presidente da Câmara e de movimentos patrocinados pela OAB contrários à MP, defendendo – no caso – os interesses privados inconstitucionais de uma espécie de “partido orgânico do mercado”, o Ministro da Fazenda propõe um acordo pragmático. Oferece a quitação dos juros e multas em caso de derrota do contribuinte-infrator para a aprovação da MP. Tal benefício, também inconstitucional, importa em redução de mais da metade da dívida, eis que os processos no CARF têm duração média de 9 anos!
De um lado, a lei confere a um Tribunal controlado pelos devedores a decisão final sobre as imposições tributárias autorizadas pela Constituição e reguladas por lei, nos casos concretos, favorecendo – como se viu até agora – sonegações bilionárias. Por outra parte, excluiu da apreciação do Poder Judiciário lesões a direitos dos credores tributários. Os integrantes da comunidade social, que dependem destas fontes de receitas para concretização dos seus direitos fundamentais, estão fora da equação do mais deslavado corporativismo fiscal da história da República.
Foi instituída, assim, em benefício do estamento superior da sociedade, uma radical desigualdade perante a lei em relação a todos os cidadãos, violando as garantias constitucionais fundamentais da igualdade na aplicação da lei e de acesso ao Poder Judiciário. Esta garantia, que tem na outra face a igualdade na edição da lei, está expressa na abertura do artigo 5º da Constituição, que inicia o capítulo “Dos direitos e deveres individuais e coletivos” dizendo que “Todos são iguais perante a lei…”. Garantia reforçada no inciso XXXVII, dispondo que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Evidente aqui e agora a fisionomia dos privilégios medievais para o estamento da nobreza. A justificação deste privilégio medieval é produzida pelos portais midiáticos do mercado. Primeiro, geram fartos momentos de violência simbólica com seus videoclipes acrobáticos, que conferem às autodenominadas classes produtivas o estandarte do heroísmo na geração do progresso e da felicidade geral. Ora exibem automóveis voadores das montadoras alienígenas (que só falavam inglês), ora projetam lavouras infinitas dos agronegociantes que alimentam o mundo. E logo a seguir, evocam os banqueiros invisíveis que distribuem dinheiro a juros razantes, quase negativos, fazendo belos jovens saltitarem até às nuvens de tão felizes.
Depois vem a reflexão circunspecta dos comentaristas políticos, entoando o bordão do “estamos à beira do abismo” diante de qualquer pressão para redução dos juros ou da ameaça de imposição tributária visando tirar alguns centavos dos ricos. Reflexão sempre seguida do chamamento dos economistas “adoutorados” no norte que inundam o país, para repisar o dogma da austeridade e a prudência extrema em nome da ciência.
Assim como o heróis do mundo do faz de conta de CHICO BUARQUE, que “enfrentam os alemães e seus canhões”, merecendo “princesas nuas nos seus bosques encantados”[1], os heróis do progresso e da felicidade geral no Brasil – as classes produtoras – merecem um Tribunal Medieval só para eles, único no mundo em que os infratores são também juízes. Isto só acontece no mundo do faz de conta e neste país, enquanto os juristas fazem reflexões profundas e os Tribunais esperam.
[1] BUARQUE, Chico. João e Maria.
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