Vitória de Claudia Sheinbaum não é apenas do México, mas de toda a América Latina

Até no plano humanitário a presença mexicana contrasta com a ausência brasileira na América Central e no Caribe

A presidenta eleita do México, Claudia Sheinbaum. Foto: Pedro Pardo/AFP

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“Bossa nova é também o sofrimento de muitos jovens, do mundo inteiro, buscando na tranquilidade da música não a fuga e alienação aos problemas do seu tempo, mas a maneira mais harmoniosa de configurá-los– Vinicius de Moraes

A vitória de Claudia Sheinbaum não é apenas das mexicanas e dos mexicanos, mas de toda a América Latina e Caribe.

Estando na região de maior sensibilidade para o império estadunidense, o México conseguiu retomar o melhor de sua história soberana.

Se para o Brasil é dificílimo conseguir trilhar o caminho do desenvolvimento e da soberania, sempre obstaculizado pelos interesses do Norte, para os países da América Central e Caribe aquela estrada é ainda mais tortuosa, por estarem na zona de prioridade máxima para a geopolítica do império.

Pior, o México está na América do Norte, onde a hegemonia dos EUA é avassaladora.

Com efeito, a vitória dessa que será a primeira presidenta do México transcende o território mexicano, pois as relações do país com a América Central e o Caribe são importantíssimas, muito superiores às brasileiras, uma vez que diplomacia nacional ainda tem os vértices prioritariamente traçados pelos eixos coloniais, que nos conduzem às antigas metrópoles do Norte.


De fato, pouco conhecemos o Caribe (embora sejamos país caribenho, graças ao litoral do Amapá) e quase desprezamos a América Central, tal a ausência de conhecimento sobre os países mesoamericanos e a falta de política externa para eles.

Ao contrário, a presença mexicana em ambas as regiões é determinante, seja do ponto de vista político, seja cultural.

Na esfera política, vale notar que, ao contrário do Brasil da extrema-direita imposta pelo golpe militar de 1964, o México jamais rompeu relações diplomáticas com Cuba; por causa da quartelada, a diplomacia brasileira ficaria ausente da Ilha por mais de 20 anos.

Até no plano humanitário a presença mexicana contrasta com a ausência brasileira: por exemplo, o país asteca conta com navio-hospital, que envia ao país da América Central ou do Caribe que estiver em emergência humanitária.

O Brasil, economia maior do que a mexicana, não conta nem cogita ter um importante instrumento de socorro internacional como esse.

Ainda pior, o desconhecimento regional se traduz, no caso brasileiro, em ausência de contatos e trocas também entre os movimentos sociais, principalmente o negro, e os congêneres caribenhos e centro-americanos. De tal sorte que passamos ao largo de toda a evolução da diáspora negra da região, inclusive de pensadores tão essenciais para a compreensão dos rumos do pensamento negro fora da África, como o do jamaicano Marcus Garvey, que moldaria o comportamento negro no Caribe, na América Central, mas também nos EUA, sendo possível retraçar seu DNA nas ideologias e ações nos dois principais pilares do movimento negro pelos direitos civis, no século XX nos EUA, os líderes Martin Luther King e Malcon X, cada um reinterpretando e atualizando Garvey à própria maneira.

Vale notar que foi Marcus Garvey a primeira voz a propugnar a dignidade dos negros e negras da diáspora, indo desde a construção de um pensamento próprio que refletisse suas características e necessidades até sua estética, de tal sorte que o vestir-se fosse um exercício de embelezamento para si, mas também – e principalmente – para o outro, o que revolucionaria o conceito a um tal ponto que os brancos, passado mais de um século, não o atingiram, aí incluídos os maiores centros da moda branca, Paris, Milão ou Nova York.

Na biografia de um caribenho, o médico psiquiatra martinicano Frantz Fanon (editora Perspectiva), a autora Alice Cherki reflete sobre o sentido decolonial da obra de Fanon:

“Leva tempo, dizem os especialistas, uma quantidade imensurável de tempo, até que possamos nos livrar do que nos é atribuído pela opressão.”

Naquela obra, a biógrafa aduz:

“As grandes linhas desse quadro já foram traçadas por Fanon em sua época. E mais, quando se fala da violência dos subúrbios e, especialmente, de filhos de imigrantes, fala-se efetivamente de pessoas ‘banidas de lugares’, geralmente oriundas de uma realidade camponesa, pobre, popular…Ao contrário, os ‘herdeiros’ dos deserdados, dos quais Fanon fala no fim da sua curta existência, são sem dúvida os que são encontrados nas favelas…ou nos arredores…e depois nos próprios centros urbanos; são os que têm sido reiteradamente despojados, repetidamente relegados à despossessão, e que, apesar de tudo, mantiveram a sua dignidade e se recusaram a desistir sem luta. ‘Onde estão as linhas de força que ordenam?’, perguntava-se Fanon. Onde estão as referências simbólicas? O que acontece quando esses sistemas se baseiam na ignorância mútua e na desvalorização e rejeição recíprocas? Ou a paralisia ou a ruptura violenta. A paralisia, naturalmente, pode assumir a forma de submissão a um esquema cultural definido a priori”.

Sim, esse é o risco, de que o oprimido não consiga identificar as raízes da opressão, não identifique as amarras culturais impostas pelos meios de desinformação e termine por não se reconhecer na classe social a que, de fato, pertence.


A vitória de Claudia Sheimbaun, com 60% dos votos, demarca exatamente essa diferença entre a realidade mexicana e a brasileira.

O nosso fechamento, a pouca instrução e a incapacidade de gerar pensamento autóctone por parte dos setores progressistas brasileiros parecem ser endêmicos e podem nos custar até uma futura derrota para a extrema-direita, a qual, na Europa Ocidental, deverá fazer “barba e cabelo” nas eleições desta semana para o Parlamento Europeu.

Só nos resta dizer: Que viva México! Que viva o pensamento latino-americano, indígena, negro, decolonial!

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