Política

“Sou vítima da ditadura, não colaborador”

Em depoimento à Comissão Municipal da Verdade, o fotógrafo que registrou o falso suicídio de Vladimir Herzog diz que sofreu tortura psicológica

O fotógrafo do falso suicídio de Vladimir Herzog analisa a imagem feita por ele em um tablet durante visita ao Doi-Codi
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Às 8h da manhã de sábado, 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog se apresentou voluntariamente ao DOI-Codi, o principal aparelho repressor da ditadura, vinculado ao II Exército e localizado na rua Tomás Carvalhal, 1030, no bairro do Paraíso em São Paulo.

Acusado de integrar o Partido Comunista Brasileiro (PCB), Herzog não sairia de lá com vida. Os seus algozes foram implacáveis na tortura. Às 15h do mesmo dia o serviço já estava feito e a última lembrança que parentes e amigos tiveram foi uma foto de um falso suicídio montado, com o jornalista enforcado no cinto do macacão verde-oliva de presidiário que usava, mas com as pernas dobradas e os pés apoiados no chão, em suspensão incompleta.

O autor dessa imagem que correu o mundo, produziu uma comoção nacional e fez mudar as atitudes da sociedade civil frente às torturas praticadas contra presos políticos foi o fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, na época com 22 anos e estudante da Escola da Fotografia da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, subordinada ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Trinta e oito anos depois, Vieira aceitou falar publicamente sobre os momentos que vivenciou nos porões do DOI-Codi – em 2012, ele quebrou o silêncio ao conceder uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.

O depoimento, desta vez, foi dado durante uma audiência da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog realizada na manhã de terça-feira 28, na Câmara Municipal de São Paulo.

Diante de um auditório lotado, com vários ex-presos políticos na plateia, Vieira afirmou que estava apenas cumprindo ordens e que, naquele 25 de outubro, não sabia quem era aquele cadáver que estava fotografando.

“Pertencia a uma turma de 20 estagiários da Academia de Fotógrafos (na USP) e, neste final de semana, fomos colocados à disposição do Dops para atendimentos de caso (encontro de cadáveres). No final da tarde, fui levado por uma equipe do meu alojamento até o local e não fiquei nem 5 minutos na cela onde o Herzog estava. Fiz três fotos e logo me levaram embora”, afirmou.

O presidente da comissão, vereador Gilberto Natalini (PV), fez diversos questionamentos a Vieira, que não soube responder com precisão a todas as perguntas. Detalhes como quem foram as pessoas que o levaram até a delegacia, em qual hora do dia essa visita aconteceu e como estava a cena onde o assassinato ocorreu ficaram obscuras.

Vieira disse ter achado estranha a posição em que Herzog estava, mas a blindagem e a visível pressa dos militares em resolver logo o caso impediram outras fotos do ambiente.

“Naquele momento eu estava tenso, nervoso, e só fui me dar conta de que tinha sido um homicídio durante a semana seguinte, quando ouvi comentários de alunos no CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo). A primeira vez que vi essa minha foto foi no Jornal do Brasil, que mostrava um protesto desses alunos”, respondeu.

Vítima da ditadura

Depois de capturado o instante que se tornou decisivo na luta pelo restabelecimento da democracia, Silvaldo trabalhou durante mais três anos junto ao Dops, registrando presos políticos torturados na capital paulista e em Santos, sua cidade-natal. De lá, saiu do país e foi morar em Los Angeles, nos Estados Unidos, por “não querer mais estar junto daquela situação”.

Hoje, entretanto, ele não se considera cúmplice da ditadura pelos serviços prestados. “Eu me sentia muito mal, também estava sendo torturado psicologicamente. Hoje me considero mais uma vítima da ditadura do que um colaborador. Na época, eu só queria aprender mais sobre fotografia e tinha uma boa oportunidade junto ao Instituto de Criminalística”, minimizou.

Para Ivo Herzog, filho mais velho de Vladimir Herzog, Silvaldo foi passivo e conivente com os repressores. “A gente não tem que pegar leve, estamos contando a verdade desse país, que não é bonita. É triste e dolorosa. Se a gente fizer um balanço do papel do Silvaldo na história política do Brasil, infelizmente ele estava do lado errado. Ele não é uma vítima”, disparou.

Segundo Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas em 1975, o depoimento de Silvaldo é mais um elemento importante para entender os fatos ocorridos no período. “Cada vez o caso Herzog aparece de ângulos diferentes. E o fotógrafo, no mínimo, foi temeroso demais naquela época, o que se justifica, do ponto de vista humano, que uma pessoa teme a repressão. De certa forma, ele está se penitenciando ao vir a público depois de tanto tempo.”

Ao final da audiência, Natalini apontou que a versão contada por Silvaldo – uma das poucas testemunhas oculares da cena – é importante para a Comissão montar as peças do quebra-cabeça que foi o período e, com isso, reestabelecer a verdade e a justiça.

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