Política

A coerção e os direitos fundamentais

A atividade probatória, seja na fase inquisitorial ou na fase processual, deve observar os procedimentos previstos em lei

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“Me senti prisioneiro hoje de manhã. O (…) não precisava ter mandado uma coerção na minha casa de manhã. O (…) não precisaria ter mandado uma coerção na minha casa, na casa de meus filhos, da casa de companheiros. Lamentavelmente preferiram utilizar a prepotência, um show, um espetáculo de pirotecnia”, declarou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Estou indignado com o que fizeram com a minha família.”

O trecho acima retrata o sentimento recente experimentado por Lula em decorrência da execução de um mandado de condução coercitiva para que fosse ouvido. 

Fossem outros os tempos, em que a coragem fosse uma virtude abundante e disseminada nos cidadãos, talvez, um escritor, como Émile Zola, tivesse a ousadia de enviar uma carta, intitulada “Eu acuso”, que seria enviada não ao presidente da República, mas ao ministro presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça.

A carta serviria para que sua excelência, sem intervir em qualquer decisão judicial, lembrasse à magistratura e aos demais órgãos essenciais da Justiça que o modelo de persecução criminal adotado no Brasil não está dissociado do máximo respeito à dignidade da pessoa humana e da observância das regras de proteção de direitos humanos e liberdades fundamentais, entre elas o artigo 8, parágrafo 1º, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que, dentre outras coisas, prevê:

“Toda pessoa tem direito a um processo com as devidas garantias e com uma razoável duração julgado por um tribunal competente, independente e imparcial, previamente estabelecido pela lei, na busca de provas em causa de natureza penal ou para determinação de seus direitos e obrigações de natureza, civil, trabalhista, fiscal ou qualquer outra natureza.”

O que significa essa singela regra, mas de grande valor para os Estados Democráticos de Direito? Simplesmente que a atividade probatória, seja na fase inquisitorial, seja na fase processual, deve observar os procedimentos previstos em lei.

Na fase investigatória, a obtenção de provas, quando necessária, pode ser feita pela expedição de mandado de busca domiciliar para, entre outras coisas, apreender objetos necessários à prova de infração (art. 240, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal). Normalmente, a expedição se dá em sigilo, sem a intimação prévia do investigado ou dos atingidos, justamente, para evitar-se a frustração da medida.

Mas, e a oitiva de testemunhas ou mesmo do investigado? Esta se dará perante a autoridade policial, mediante prévia intimação. Apenas se, regularmente intimado, a testemunha ou o investigado deixar de comparecer, sem motivo justificado, é que poderá ser determinada a sua condução coercitiva (art. 201, parágrafo 1º, artigo 218 do CPP).

A ordem de condução coercitiva de pessoa, na condição de testemunha ou de investigado, sem o prévio desatendimento injustificado à tempestiva e regular intimação constitui desrespeito objetivo ao direito fundamental de observância do devido processo legal. Serve, salvo melhor juízo, apenas, para: a) expor o conduzido à execração pública; b) quebrantar-lhe o ânimo; e c) ao mais frágil, impor-lhe o temor da prisão para colaborar com a investigação e, quiçá, se incriminar.

Nada mais antigo, medieval e antidemocrático, conforme comprova a transcrição de parte da carta de Émile Zola:

“É impossível conceber as situações às quais ele submeteu o infeliz Dreyfus, as armadilhas nas quais ele quis apanhá-lo, as investigações delirantes, as invenções monstruosas, uma enorme demência torturante.”

“Ah! Esse primeiro fato é um pesadelo para quem o conhece nos seus verdadeiros detalhes! O comandante du Paty de Clam prende Dreyfus e o coloca na solitária. Vai até a casa da senhora Dreyfus, amedronta-a, e diz que se ela contar alguma coisa para alguém seu marido estará perdido. Durante esse tempo, o infeliz se desespera, clamando inocência. E a instrução foi feita dessa forma, como se fosse uma crônica do século XV, misteriosa, com expediente cruéis …”

Finalizo com o esclarecimento de que, com este artigo, expressão do meu direito fundamental de opinião, não pretendo manifestar juízo depreciativo sobre despachos ou decisões de quem quer que seja (não quero terminar como Émile Zola, que pela carta foi processado por difamação e condenado a um ano de prisão e 3 mil francos de multa), mas, apenas, difundir a opinião doutrinária que o máximo valor da magistratura, enquanto instituição necessária à democracia, está no respeito objetivo ao devido processo legal.

*Silvio Luís Ferreira da Rocha é professor livre-docente em Direito Administrativo pela PUC-SP, juiz federal criminal em São Paulo e ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça

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