Política

A intervenção militar é um filme trágico e repetido

O silêncio diante das palavras do general Hamilton Mourão coloca o País em um caminho perigoso

Tropas no Rio de Janeiro: não cabe aos comandantes a "última palavra"
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Uma das características das democracias, em seu conceito ocidental, é o rigoroso império da ordem legal-constitucional, reinando sobre todos e tudo, pessoas e instituições, sem privilégios de classe ou posto, ou função. A República moderna, ainda herdando o que sobrou da teoria clássica da separação e harmonia dos poderes (Montesquieu), entre nós Executivo, Legislativo e Judiciário, ignora o ‘Poder Moderador’, uma herança do Império, a qual, no entanto, tende a insinuar-se nos momentos de crise institucional, vividos com certa frequência nas democracias ditas frágeis, como aliás pode ser identificada a brasileira.  

Recentemente o Poder Judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, tem intentado exercer esse papel de custódia que a Constituição lhe nega, extrapolando os limites de sua estrita competência, e interferindo, para reduzi-los, os poderes tanto do Legislativo quanto do Executivo, ora legiferando, ora operando como se Executivo fôra.

Esse papel, de fato uma usurpação, vem sendo perseguido nos últimos anos, e chegou mesmo a ser formalmente defendido pelo ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do STF, em artigo de imprensa que, todavia, não despertou as preocupações que estava a merecer dos constitucionalistas liberais, hoje silentes como uma pedra de mármore.

Essas intervenções descabidas, por inconstitucionais e perturbadoras da ordem jurídica, se manifestam no comportamento coletivo da Corte e no comportamento esdrúxulo (para dizer o mínimo) de alguns de seus membros, e o exemplo paradigmático, inexcedível, devemos ao ministro Gilmar Mendes, candidato a pop star, a deitar falação sobre temas que dizem respeito a outras casas da Praça dos três Poderes. A esse fenômeno de hoje chama-se ora ativismo judicial, ora judicialização da política. Seja isso ou seja aquilo, será sempre um indicador da fragilidade e dos riscos  do processo democrático brasileiro, caracterizado, especialmente na República, por frequentes interrupções da ordem constitucional. São governos de exceção que tomam formas as mais diversas, caminhando  do autoritarismo larvar às ditaduras militares, passando por períodos de violência legal, como o que estamos vivendo, quando qualquer juiz, dizendo interpretar a lei ou a Constituição, transforma-se em legislador e constituinte.

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A Justiça se partidariza, adota um dos lados querelantes, e chega mesmo a “revogar” a vigência do dispositivo constitucional que consagra a presunção da inocência. Trata-se da heterodoxa ‘flexibilização das garantias constitucionais’, com a qual se pretende, por exemplo, a legitimação de prisões antes de esgotados os recursos a que todo condenado tem direito. No extenso rol de  violência que caracteriza a exceção constitucional estão o uso de prisões preventivas com prazo indeterminado como instrumento de chantagem processual, o abuso das conduções coercitivas acompanhadas de estardalhaço mediático. a política de ‘vazamentos seletivos’, e a manipulação das delações em busca de confissões dirigidas. A associação do Ministério Público Federal com o STF criou a figura inconstitucional do juiz de jurisdição nacional e monopólio temático, caso do juiz Sérgio Moro, para cuja mesa convergem todos os processos que digam respeito à Lava Jato, independentemente da jurisdição de apuração dos fatos. E Moro – enfant gâté da grande mídia — é apenas o exemplo mais estelar: nele confundem-se as figuras de investigador,  promotor e julgador, jogando às favas a isenção que a Constituição impõe a todos os membros da Magistratura, em todos os níveis.   

As vítimas desse terrorismo judicial não são apenas os perseguidos pela lei, independentemente do mérito do que se lhes imputa, mas o Direito, que se fragiliza sempre que as regras legais são violadas, ainda quando em nome de suposta defesa da legalidade. Como em 1964, quando os militares, em nome da defesa da Constituição e da democracia, supostamente ameaçadas por um governo constitucional, nos impuseram 20 anos de ditadura. Como recentemente, no processo do impeachment de Dilma Rousseff, que se sabe hoje comprado com as fartas malas de dinheiro de Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Michel Temer et caterva.

A prática da intervenção militar, direta e indireta, nasce com a República, com o golpe de 15 de novembro de 1889 e com o governo inconstitucional de Floriano Peixoto e se consolida com os conflitos e levantes militares que se seguem num crescendo desde o levante da Armada (1893-1894);  como processos em cadeia seguem-se os levantes de 1922 (Forte de Copacabana), 1924 (revolta paulista ou Revolta de Isidoro) e 1925 (início da Coluna Prestes-Miguel Costa),  até a ‘revolução’ de 1930 e o governo provisório. Esse período é, por seu turno, marcado pelo levante paulista de 1932, o levante comunista de 1935, a implantação do Estado Novo em 1937 e o putsch integralista de 1938, até o golpe de 1945, que, depondo Vargas, assegurou a reconstitucionalização de 1946. A jovem democracia, porém, logo seria vítima de mais uma intervenção militar na ordem institucional, com a crise de agosto que culminou com a deposição e suicídio de Getúlio Vargas, presidente eleito em 1950.

A tênue normalidade constitucional seria truncada com a frustrada tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck, eleito presidente da República em 1955. À tentativa de golpe comandada pelo brigadeiro Eduardo Gomes e o marechal Juarez Távora, interpôs-se  o golpe vitorioso (ou contragolpe) dos marechais Henrique Teixeira Lott e Odílio Denys, ministro da Guerra e comandante do I Exército, respectivamente, depondo o presidente Café Filho. No governo, Juscelino sufocaria duas arruaças  militares, a de Jacareacanga (1956) e a de  Aragarças (1959), lideradas por oficiais da Força Aérea Brasileira. Uma intentona militar tentaria, em 1961, impedir a posse de João Goulart, e, derrogando o presidencialismo, lograria impor ao Congresso Nacional o parlamentarismo (a seguir rejeitado em plebiscito nacional) como regime de governo. Enfim, tivemos o golpe de 1964 e a longa ditadura que se seguiu e que ideologicamente sobrevive no pensamento político de setores expressivos das forças armadas.

Esses fatos mostram, ao lado da óbvia indisciplina, a preeminência da força militar, impondo pelas armas uma vontade que não emana da soberania popular. Essa preeminência fez das Forças Armadas brasileiras, na República de 46, o ‘poder moderador’ (um ‘quarto poder’ que se postava acima de todos os demais) que agora o STF intenta disputar, valendo-se  da fragilidade de um Legislativo e de um Executivo irmanados no abraço de afogados no mar de corrupção em que estão envolvidos, a se sustentarem tão somente em virtude de se prestarem a destruir, de forma sistemática, as conquistas econômicas e sociais das últimas oito décadas, em benefício do “mercado” e do rentismo.

O que chamamos de República de 46 era, nesses termos,  um regime sem maturidade, sem segurança política, sujeito a quarteladas e marcado pelo que então se convencionou chamar de ‘pronunciamentos’ militares, pois os ministros militares, principalmente o ministro da Guerra (como então era denominado o hoje comandante do Exército), falavam e eram ouvidos e consultados sobre tudo. Mas não só eles, pois a tal direito se arvoravam coronéis e seus ‘Memoriais’, e o Clube Militar era uma das instâncias mais efetivas de agitação de que dispunham.

Era um poder que amedrontava a todos, pois o único armado.

Um cenário inaceitável.

Naquele então os militares se pronunciavam sobre tudo o que dizia respeito à vida civil, sobre eleições e candidaturas, sobre salários dos funcionários públicos e reajuste do salário-mínimo, anunciavam vetos e aprovações, sancionavam e condenavam candidaturas. Tinham sempre a “última palavra” sobre tudo.

Essas considerações vêm a propósito do mais recente, insólito e inaceitável pronunciamento, político e assustadoramente golpista, do reincidente general Antônio Hamilton Martins Mourão, que, dizendo falar em nome de seu comandante e do Alto Comando do Exército, ameaça o país com uma nova intervenção militar, uma nova ruptura da Constituição, um novo crime coletivo contra a República. Seu pronunciamento, o general devidamente fardado (por quê?), teve como auditório uma loja Maçônica em Brasília, na última sexta-feira 15 e nossa imprensa, cúmplice em todos os golpes levados a cabo em nossa história, não lhe deu até aqui a devida importância, como silente está o soi disant ministro da Defesa, como silente permanecem os democratas e liberais de carteirinha. O grave incidente seria ignorado se não tivesse sido filmado e distribuído pelas redes sociais. O primeiro registro, sumário, se seu pela Folha de S. Paulo on line só no domingo à noite, vindo para as páginas impressas apenas na segunda-feira. A indisciplina precisa ser cortada pela raiz e no caso do general Mourão, não pode passar em brancas nuvens, pois se trata de um reincidente de cinco estrelas, pois em 2015 perdeu o comando do III Exército após agredir os governantes aos quais devia obediência constitucional.

Nesta altura, qualquer silêncio será lido como tonitruante discurso de apoio. O repúdio à intervenção militar deve nos unir a todos. É filme que já vimos, de dolorosa memória.

*Leia mais em www.ramaral.org

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