Política

A reforma trabalhista rural e a volta ao passado

Não apenas paramos de avançar como agora estamos a caminhar para trás

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“É pelo rastro que se conhece o tamanho da onça”. O provérbio me veio à cabeça ao observar mais um sinal dos tempos e das intenções em um momento histórico para o País: nossa jornada de retrocessos. Sinal dos tempos, porque está cada vez mais evidente que existe atualmente no Congresso Nacional um grupo trabalhando diuturnamente para desconstruir o que o País levou décadas para consolidar, as bases jurídicas para combater o trabalho análogo ao de escravo; e das intenções, porque embora mais uma vez esteja claro o objetivo de validar a subtração de direitos dos trabalhadores, o pretexto colocado à mesa de discussão sempre é outro.

Em questão, o PL 6442/2016 que regula o trabalho rural e tem apoio da bancada ruralista do Congresso, diga-se.

Para fazer valer as mudanças, fala-se em modernização e criação de segurança jurídica na relação do trabalho no campo.

O projeto de lei trata da remuneração do trabalhador rural, da jornada de trabalho e de regras de saúde e segurança, entre outros pontos.

Em seu artigo sétimo, ao estender a jornada de trabalho para 12 horas diárias, o texto diz que a prorrogação das horas trabalhadas será admitida “ante necessidade imperiosa ou em face de motivo de força maior, causas acidentais, ou ainda para atender a realização ou conclusão de serviços inadiáveis, ou cuja inexecução possa acarretar prejuízos manifestos” e ainda permite que as horas extras sejam substituídas por compensações em folgas, e que o funcionário trabalhe por até 18 dias seguidos antes de ter um dia de descanso.

Jornada exaustiva é uma das modalidades de escravidão contemporânea, explícitas no Código Penal Brasileiro, mas que – sinal dos tempos –, estão tentando retirar do conceito de trabalho escravo. E há o Projeto de Lei 432/2013, que hoje tramita no Senado, com este objetivo. Mera coincidência? De um lado, a tentativa de desfigurar o referido conceito instituído pelo Brasil, aclamado, inclusive, por organismos internacionais, e de outro, aumenta-se a jornada de trabalho. Esse é um jogo de liga-pontos fácil.

No artigo terceiro do PL do trabalho rural, o texto diz que “empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural ou agroindustrial”, “mediante salário ou remuneração de qualquer espécie”. Pois bem, neste último ponto, que especifica a forma de pagamento, temos uma brecha.

Não adianta, então, bradarem que a proposta não tem como objetivo o pagamento em forma de comida ou moradia quando no Brasil já temos exploradores que fazem isso mesmo podendo ser enquadrados na lei. Um projeto, nesses termos, só vai legitimar esse descalabro. 

Basta reconhecer que mesmo havendo subnotificação de casos e necessidade de reforços na fiscalização, entre 2000 e 2016, 48,8 mil pessoas em condição análoga à escravidão foram resgatadas por fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego, uma média de oito escravos ou escravas por dia.

Para ficarmos apenas em um caso recente, uma família de nove pessoas foi resgatada por fiscais do Ministério do Trabalho e pela Polícia Federal em uma situação de trabalho semelhante à escravidão em uma plantação de tomate, em Brejetuba, no Espírito Santo. O caso foi divulgado no último dia 13 de maio, que por triste ironia, é o dia em que se comemora a abolição da escravidão no Brasil.

Além de serem vigiados por capangas e terem de dormir no chão frio de um casebre, eles trabalhavam a troco de um pouco de comida, ou seja, sem receber salário.

É fundamental salientar que embora a zona urbana tenha entrado no radar da fiscalização sobre o trabalho escravo que passa a inspecionar diferentes cadeias produtivas – e é de suma importância que essa tarefa seja ampliada –, a exploração da mão de obra escrava é muito recorrente no meio rural.

O explorador sempre busca o trabalhador em áreas de maior vulnerabilidade e o leva para outro Estado, longe de tudo e de todos. Uma vez “fisgado” com falsas promessas de emprego e salário, esse trabalhador é mantido em condições insalubres, muitas vezes em lugar sem água potável, sem cama, com jornadas que ultrapassam 12 horas por dia, sob ameaças, com dívidas que o impedem de ir embora, sem contar as ameaças de morte ou castigos físicos e a falta de equipamentos de proteção para o trabalho, que aliás também é outro ponto em questão no projeto de lei em discussão.

De acordo com a proposta, as inspeções sobre as condições de trabalho terão um caráter “educativo e preventivo” e sempre haverá uma segunda chance, já que será observado “o critério da dupla visita em todos os casos”. Na prática significa que se a saúde do trabalhador estiver sendo colocada em risco, nada acontecerá com o contratante quando for feito o flagrante em uma primeira inspeção.  

O projeto também exclui os ministérios da Saúde e do Trabalho da fixação de regras sobre a manipulação de agrotóxicos. Nunca é demais lembrar que um levantamento divulgado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), revela que 70% dos alimentos in natura consumidos no Brasil estão contaminados por agrotóxicos. Outra mera coincidência, talvez…

Ora, se o pomo da discórdia são questões específicas do projeto de lei, tais como o pagamento em qualquer espécie, a jornada estendida e o afrouxamento na fiscalização da segurança no uso de agrotóxicos na lavoura, e se não há má intenção do legislador, por que não reparar esses termos?

Por que não sinalizar, ao fim e ao cabo, que os direitos sociais e da segurança no trabalho permanecerão garantidos? E o que são essas questões senão os direitos básicos do trabalhador?

É angustiante observar que o discurso do então presidente João Goulart em que ele dizia que “a maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana” e que “os milhões (de brasileiros) que nada têm, impacientam-se com a demora em receber os dividendos de um progresso duramente construído também pelos mais humildes”, revele um sentimento ainda tão atual após 53 anos dessa declaração. E não bastasse sentirmos que em algum momento paramos de avançar, também há a percepção agora de que estamos a caminhar para trás.

Isso significa que ao permitir que o País retire direitos básicos e com ele, a dignidade do trabalhador, sujeitando-o a condições de alojamento, saúde, pagamento e segurança desumanas e em contrapartida, ampare o elo mais forte dessa cadeia e a ele dê o livre direito de empregar e pagar como queira, nossos passos nos colocarão de volta ao século 19, antes da abolição da escravidão.

Carlos Bezerra Jr., 49 anos, é médico, deputado estadual (PSDB-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo

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