Política

Após ‘PL do Estupro’, políticos bolsonaristas têm novos projetos que ameaçam aborto legal

Parlamentares tentam avançar projetos enquanto PL que equipara aborto com mais de 22 semanas a homicídio não é votado

Protesto contra o PL antiaborto no Rio de Janeiro, em 23 de junho de 2024. Foto: Pablo Porciúncula/AFP
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Poucos dias depois de o Congresso Nacional ter recuado na urgência da votação do Projeto de Lei 1.904 de 2024 – que equipara a interrupção da gestação com mais de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de violência sexual –, parlamentares bolsonaristas colocaram em tramitação outros dois projetos de lei que ameaçam o direito ao aborto legal em casos de estupro.

O deputado Marcos Pollon (PL-MS) também fez um requerimento para apensar (anexar) outro projeto (1920/2024) ao PL 1904. A proposta de Pollon mira na criminalização dos médicos que fizerem interrupção da gravidez acima de 22 semanas, com penas de cinco a 18 anos de reclusão.

Em 19 de junho, um dia depois de o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ter adiado o debate sobre o chamado “PL do Estupro”, um grupo de 35 deputados apresentou o Projeto de Lei 2.499/2024. O texto obriga unidades de saúde a notificar a polícia em casos de interrupção da gravidez decorrente de estupro. Uma portaria do governo de Jair Bolsonaro (PL) que estabelecia essa mesma obrigação foi derrubada pelo Ministério da Saúde no começo do governo Lula (PT).

“É uma proposta com viés policialesco, que mais prejudica e afasta as vítimas do serviços de saúde, do que de fato as protege”, avalia Clara Wardi, que é assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) e se dedica ao monitoramento do Legislativo sobre políticas que envolvam direitos sexuais, reprodutivos e violência contra as mulheres.

“Isso pode gerar medo e constrangimento às pessoas que recorrem ao serviço de saúde porque ameaça a privacidade da vítima e o sigilo entre médico e paciente. É importante que esses dados fiquem restritos aos serviços de saúde, que acolhem e amparam essas pessoas, e que isso só vá às autoridades de segurança por escolha da vítima”, explica Wardi.

Esse novo projeto de lei determina também que as unidades de saúde sejam obrigadas a preservar fragmentos do feto e entregá-los às autoridades policiais e judiciárias. Wardi diz que isso é uma “forma de tentar criar provas contra as pessoas que estão acessando o serviço e pôr em dúvida a credibilidade das pessoas que estão notificando o estupro”.

Alguns dos deputados que assinam a proposta também são autores do “PL do Estupro”: Filipe Martins (PL-TO), Carla Zambelli (PL-SP), Delegado Ramagem (PL-RJ) e Mario Frias (PL-SP). Entre os signatários ainda há outros nomes conhecidos da extrema direita bolsonarista, como o ex-ministro da Saúde do governo Bolsonaro General Pazuello (PL-RJ) e a deputada evangélica Clarissa Tércio (PP-PE). Em 2020, Tércio protagonizou a tentativa de invasão de um hospital, no Recife, por um grupo de políticos pastores. Eles tentavam interromper o aborto legal de uma menina de 10 anos estuprada pelo próprio tio.

Clarissa Tércio (PP-PE), deputada evangélica autora do projeto de lei que proíbe a assistolia fetal. Créditos: Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados

Tércio também é autora do PL 1.096/2024, que aguarda parecer da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados. Ele modifica o Código Penal brasileiro para proibir a assistolia fetal, uma técnica utilizada para a interrupção segura da gravidez recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Nós vínhamos monitorando esse projeto como um dos mais ameaçadores em tramitação no Congresso, mas, por uma questão política, de força da bancada evangélica, o PL 1.409 acabou sendo pautado antes”, diz Clara Wardi, do Cfemea.

Senador apontado na crise de saúde Yanomami apresentou projeto que impede aborto legal

No Senado, o bolsonarista Mecias de Jesus (Republicanos-RR) apresentou o PL 2.524/2024, no dia 21 de junho. O texto altera o Código Civil para reconhecer “direitos do nascituro [feto]” e estabelecer a “presunção absoluta de viabilidade fetal a partir da 22a semana de gravidez”. Atualmente a lei não determina um limite de idade gestacional para o aborto legal, que é previsto em casos de violência sexual, risco de vida da gestante e anencefalia do feto.

O senador Mecias foi apontado entre os responsáveis pela crise sanitária que causou a morte de 570 crianças Yanomami. Segundo relatório da ONG Transparência Brasil, ele teria sido o responsável pela indicação ao cargo do ex-coordenador do Distrito de Saúde Indígena (Dsei) Yanomami Rômulo Pinheiro de Freitas. A má gestão da saúde indígena, que incluiu falta de remédios e precariedade no transporte aéreo, está relacionada à mortalidade dos indígenas.

Mecias também está entre os signatários do requerimento que propôs a discussão “assistolia fetal” na interrupção da gravidez no Senado. O debate foi criticado por envolver uma encenação exdrúxula antiaborto por uma contadora de histórias no plenário do Senado. A performance, além de desinformar sobre a técnica, encenou um feto chorando, algo que não ocorre na prática alvo do requerimento.

O projeto de lei de Mecias de Jesus diz ainda que o feto com mais de 22 semanas terá “direito inviolável ao nascimento”, que pode ser interrompido apenas se for “comprovado risco grave à vida da gestante em decorrência da manutenção da gravidez”, situação na qual “se procederá à tentativa de antecipação do parto e de manutenção da vida extrauterina da pessoa recém-nascida”.

Mecias de Jesus (Republicanos -RR), senador bolsonarista autor do projeto de lei que garante direitos ao nascituro. Créditos: Mecias de Jesus / Facebook

Enquanto a forte repercussão contrária ao “PL do Estupro”, com protestos em várias capitais do Brasil, fez os parlamentares recuarem, outras ameaças ao aborto legal seguem avançando no Congresso Nacional. Um monitoramento do Cfemea, ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade, mostra que há 98 propostas legislativas que querem dificultar ou proibir o direito no Brasil. Destas, ao menos oito estão “prontos para a pauta”, ou seja, podem ir a plenário a qualquer momento.

A maioria das propostas é assinada por parlamentares do Partido Liberal, de Bolsonaro. “Classificamos em quatro macrotemas: os que aumentam a pena por aborto, os ultrapunitivistas, como ‘PL do Estupro’; os que querem criar barreiras ao aborto legal, solicitando documentos, criando notificações compulsórias contra práticas como assistolia fetal a partir da 22a semana, como é o caso do “PL do Estupro”; os que estabelecem direitos civis ao feto, como o chamado “Estatuto do Nascituro”; e também os que visam passar desinformação sobre o aborto legal, como os que criam o ‘Dia do Nascituro’ ou projetos que querem colocar informação antiaborto nos testes de gravidez de farmácias ou criar palestras sobre supostos riscos em escolas, por exemplo”, explica Clara Wardi, do Cfemea. “Essa última categoria de projetos mobiliza menos o debate político, mas é de grande risco porque estão usando dinheiro público para o enfraquecimento do direito ao aborto legal no Brasil.”

O bloco ultraconservador do Congresso tem a bancada evangélica como uma das suas principais forças. Eles puxaram o debate sobre o “PL do Estupro”, que é assinado por uma de suas lideranças, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). Mas o raio-x das propostas, feito pelo Cfemea, revela que evangélicos, católicos e espíritas convergem politicamente quando o assunto é aborto.

Encenação de atriz falando sob o ponto de vista de um feto durante debate no Senado sobre o “PL do Estupro”. Créditos: Geraldo Magela / Agência Senado

Por exemplo, a deputada Cris Tonnieto (PL-RJ), que é católica e ligada à entidade ultraconservadora Opus Dei, ganha em quantidade de propostas antiaborto: ela assina 16. Um desses, o PL 580/2020, está pronto para ser pautado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC).

Essa proposta prevê a aplicação do Código Penal a crimes cometidos no exterior por pessoas brasileiras ou domiciliadas no Brasil. Na prática, o PL dificulta o acesso ao aborto em outros países. Um trecho diz “ocorre como o exemplificado, em um grau ainda maior, o crime de aborto, que em alguns países, como a Colômbia, não é mais tipificado ou, se é, está facilitado. Como ficou conhecido por meio de matérias e artigos divulgados pela imprensa, grupos têm se instalado no Brasil e inclusive financiando a ida de brasileiras ao exterior para a prática ignominiosa do assassinato intrauterino”.

Há ainda outros três PLs de autoria de Tonietto que tiveram tramitação entre março e junho deste ano – 566/2019; 1.753/2022 e 4.150/2019. Todos tentam imputar direitos civis ao nascituro, ou seja, ao feto. Atualmente, o artigo 2° do Código Civil brasileiro reconhece que a “personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”.

Um dos principais parlamentares antiaborto do Congresso, o senador espírita e pré-candidato a prefeito de Fortaleza, Eduardo Girão (Novo-CE), apresentou dois PLs sobre o tema este ano: 11/2024 e 1.125/2024. Eles querem instituir o “Programa de Conscientização contra o Aborto em âmbito nacional” e “tornar obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência e exame de corpo de delito positivo para realização de aborto decorrente de estupro”, respectivamente.

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