Política

Esquerda tenta fôlego em meio ao conservadorismo no Rio de Janeiro

Políticos tradicionais rivalizam com candidaturas de negras, feministas e minorias na disputa pelo comando político do estado

Bola dividida entre o Romário (Podemos) e Anthony Garotinho (PRP) pode repartir o voto evangélico
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Colado na capital, mas distante das maravilhas da cidade, existe um Rio de Janeiro desconhecido dos brasileiros e esquecido pelos governantes. A Baixada Fluminense, formada por quase quatro milhões de habitantes espalhados por treze municípios, retrata o agravamento da crise do estado e suas consequências para a população. E é esse contingente eleitoral que pode desequilibrar a disputa marcada pela repetição de nomes tradicionais do campo conservador em contraste às apostas da esquerda.

Para onde se olhe é possível ver o sucateamento das estruturas públicas, uma possível consequência dos sucessivos mandatos alinhados à direita. As unidades de Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), criados pelo ex-governador Leonel Brizola nos anos 80, estão hoje desativados ou subaproveitadas, imagem que corroboram os relatos de professores sobre as carências de recursos em suas escolas. Em Magé, por exemplo, o envio dos uniformes pela prefeitura atrasou meio ano.

“Somos orientados a fazer as provas em uma única folha, muitas vezes o xerox fica sem tinta, não há condição de levar a uma aula de campo, museu, teatro, essa verba desapareceu faz três anos. Isso gera um sentimento de impotência em nós educadores”, critica uma docente que acumula experiência na rede estadual e municipal de Mesquita.

“As prefeituras contratam por regime temporário para não abrirem concursos. Isso acontece em Magé, Seropédica, diversos lugares. O resultado é o não pagamento de direitos e a inexistência do plano de carreira”, acrescenta outra professora.

Ambas preferiram não serem identificadas para evitarem possíveis represálias por parte das Secretarias de Educação.

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O atendimento médico também sofre com os cortes e o descumprimento dos repasses pelo estado, debilitando os postos e hospitais disponíveis, muitos fechados ou contigenciados, situação agravada pelo aumento das doenças infecciosas.

A melhora da qualidade do padrão de vida experimentada em governos anteriores ficou da porta para dentro. Parte considerável das casas possuem televisão de led, móveis grandes e muitas ainda mantém um veículo. Do lado de fora, a fiação antiga, o saneamento precário e a falta de equipamentos culturais leva a maior parte dos moradores para as igrejas evangélicas, massivamente presente nos bairros.

“Aqui vivemos uma condição talvez mais difícil do que nas favelas do Rio onde existem ONGs e projetos de inclusão. Depois do asfalto em alguns pontos e da construção de poucas praças, a única coisa que recebemos ultimamente foram os traficantes que deixaram o morro e se instalaram por aqui rivalizando com a milícia”, conta Vitória Araújo, de São João de Meriti.

A redistribuição do comando do tráfico e a instalação de facções nas proximidades converteram a Baixada no local mais inseguro do estado, com o dobro da taxa média de homicídios do Rio de Janeiro, incluindo alto número de feminicídios, o genocídio da juventude negra e a execução de crimes políticos: nos anos recentes 13 vereadores e pré-candidatos foram assassinados com suspeitas de motivação eleitoral.

O domínio político dos conservadores sobre a área impressiona. Onze municípios são governados por partidos de direita – a exceção são dois prefeitos do PDT ,em Seropédica e Guapimirim -, raros são os vereadores progressistas.

Mesmo em Nova Iguaçu, onde o senador e candidato à reeleição Lindemberg Farias (PT) governou de 2004 a 2010 desenvolvendo programas como a cidade universitária e o bairro escola, com ênfase no ensino em tempo integral, o avanço da esquerda acabou brecado pela retomada da máquina pública por lideranças que fazem da região seu nicho eleitoral.

A quantidade de votos do deputado estadual Jorge Picciani, em prisão domiciliar e conhecido como o eterno presidente da Assembleia, em Queimados ou as repetidas vitórias de Zito e seus familiares em Duque de Caxias, Magé e Belford Roxo expõem a extensão desse quadro.

“Há um apelo do povo para que eu continue. Mantenho 40% dos votos em Nilópolis desde minha primeira eleição. O pai fala pro filho, o avô pro neto sobre quem fez a escola técnica, o viaduto, financiou bolsas de estudo”, afirma o deputado federal Simão Sessim (PP), eleito consecutivamente para dez mandatos na Câmara.

Conhecedor da ideologia local, o parlamentar, que apoiou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e é favorável às reformas de Michel Temer, aponta os favoritos da atual disputa. “A esquerda na Baixada não existe, falta liderança para entusiasmar do ponto de vista progressista. Bolsonaro é o nome mais falado, ele tem a resposta do que a região precisa, segurança. Tem também muito nordestino que gosta do Lula. Para governador está indefinido: Garotinho fez muitas obras e tem presença; Romário tem popularidade, é um ídolo do futebol; e o Eduardo Paes surge como esperança para fazer aqui o que fez na prefeitura do Rio”.

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Os principais nomes propostos pela direita tentarão se descolar do governador Pezão (MDB), administração acometida pelo retrocesso no campo social e atraso no salários dos servidores. “Pezão, infelizmente, fez um trabalho ruim. Não teve a capacidade de superar a crise política, moral e financeira. Vamos fazer um trabalho bem diferente do dele, como já fiz na prefeitura”, diz Eduardo Paes.

O ex-emedebista coloca-se na condição de político de centro, apesar da escolha pelo Democratas, legenda situada na extremadireita e minimiza a aliança com a legenda do governador. “O MDB é mais um partido que apoia a minha coligação e os partidos são feitos por pessoas com CPFs distintos”.

Poucos setores expressam melhor o desastre que o transporte público. A capital teve a pior nota em um estudo dentre 74 municípios levando em consideração a tarifa, os veículos e o tempo.

Nos arredores, as cidades dormitórios, com economias fragilizadas pela recessão no comércio e nas obras, exigem que mais de 50% dos trabalhadores gaste diariamente quatro horas em viagem, parte nos trens da Supervia, onde morreram 66 pessoas em acidentes nas plataformas em 2017, para finalmente chegarem à Central do Brasil, na capital fluminense.

Central do Mundo

A segunda maior metrópole do País convive com a expansão da miséria. Se há pouco estrangeiros lotavam o Maracanã e as arenas olímpicas, hoje são as ruas da Glória e do centro que estão cheias com a presença crescente de moradores de rua. A cena da longa fila de pessoas esperando comida nos Arcos da Lapa, no centro da cidade, contrasta com a imagem de turistas divertindo-se na escadaria Selarón, a poucos metros.

O período de prosperidade interferia inclusive no mundo do crime, conforme Nem da Rocinha, apontado como um dos maiores vendedores de drogas do estado, em entrevista ao El Pais. “Pude acompanhar na Rocinha gente que trabalhava pra mim vinha pedir pra sair do tráfico e ir trabalhar nas obras do PAC (Processo de Aceleração do Crescimento)”.

Com a volta do desemprego e da violência, a pergunta pichada nos muros sobre quem matou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes aparece escrita ao lado da dúvida acerca de “onde está Amarildo?”. A intervenção federal e a presença dos militares não oferecem respostas a esses casos, nem a outros com óbitos devido a balas perdidas.

Ao passo que diminuem-se as oportunidades, aumenta-se o medo e o apelo por mais repressão. O lançamento da pré-candidatura presencial de Jair Bolsonaro (PSL) no Rio de Janeiro insere-se nessa lógica de defesa do armamento da população e do encarceramento em massa para resolver o impasse. A projeção do clã apoia-se no fundamentalismo religioso e em discursos de ódio, mas tem no apoio majoritário da Polícia Militar e das Forças Armadas sua base mais sólida.

Esse mesmo comando militar acompanha com mansidão a venda do patrimônio petrolífero nas Bacias de Campos e a transferência de emprego para outros países. A decisão afeta Macaé, localidades próximas e se alastra a outros setores da cadeia produtiva. “O efetivo está pequeno, os novos contratos são pelo modelo intermitente. A categoria dos metalúrgicos já está negociando direto com o patrão, perdemos a cesta básica, trabalhamos no final de semana sem hora extra e a nossa folga é estabelecida arbitrariamente”, critica Raphael Jannuzzi, metalúrgico em São Gonçalo.

A solução para milhares de trabalhadores é o mercado informal, a única forma de subsistência. Além de perderem qualquer garantia trabalhista, os ambulantes enfrentam a perseguição de fiscais que confiscam mercadorias, situação que levou a proposição no Rio do programa Ambulante Legal, encampado pelo vereador Reimont (PT), candidato a deputado federal. Enquanto aguardam a aplicação da lei que lhes garante reconhecimento pelo prefeito Marcelo Crivela (PRB), os informais seguem confiando em sua própria sorte.

Divisão dos evangélicos, unidade das mulheres negras

Acima de qualquer recorte regional, o voto dos evangélicos atravessa o Rio de Janeiro de cima a baixo. A bola dividida entre o senador Romário (Podemos) – que lidera as pesquisas de intenção de voto – e o ex-governador Anthony Garotinho (PRP) pode repartir o voto evangélico. Garontinho divide o segundo lugar na preferência do eleitor com Eduardo Paes.

“Não vejo candidato algum identificado com os evangélicos concorrendo ao governo. Esse reconhecimento não pode acontecer de forma artificial como alguns pensam. O que me diferencia não é o fato de eu ser evangélico, mas a experiência de ter sido um governador que terminou sua gestão com mais de 80% de aprovação, segundo o Datafolha”, opina Garotinho.

“Para muitos não sou o mais capacitado, o mais experiente, mas não quero ter essa experiência que eles dizem ter, todos presos. Sou de origem humilde e ninguém conhece as dificuldades dos 92 municípios como eu”, provoca Romário.

Paralelo aos cabeças de chapa, pastores e bispos buscam repetir a ocupação de vagas nos parlamentos – a candidatura do Babalawo Ivanir Dos Santos pelo PPS parecia a de um camelo atravessando o fundo da agulha, mas acabou vetada pelos caciques partidários.

O gospel fala alto, mas quem grita mesmo é a potência do Funk de MC Carol (PCdoB). A candidatura da funkeira à Assembleia, composta por uma única mulher negra de esquerda, a enfermeira Rejane (PCdoB), eleva a expectativa de uma juventude que anseia ser representada nos espaços de poder.

“Eu vim de dentro da favela, diferente de muitos que foram eleitos e tiveram educação de qualidade, acesso à cultura. Essa é a minha confrontação ao sistema: ocupar o poder. Quando eu passei pela situação de violência doméstica e após a morte de Marielle vi que precisava participar da política. As que mais sofrem com violência e a falta de assistência do Estado são as mulheres pobres. Eu sofri essa violência a minha vida inteira, melhorar a vida das mulheres é melhorar a vida da sociedade fluminense”, assegura.

Ao lado da cantora, perfilam-se mulheres negras pelos partidos progressistas como Verônica Lima (PT), Benedita da SIlva (PT), Thais Ferreira (Psol), Tayna de Paula (PCdoB), Jaqueline de Jesus (PT), Claudete Costa (PT) e Dani Monteiro (Psol) e Mônica Francisco (Psol) que trabalhavam na equipe de Marielle, entre muitas outras.

Quem também apresentou-se à disputa pelo governo do Rio de Janeiro foi a professora Márcia Tiburi, filiada ao PT. A filósofa tem em seu plano de governo, elaborado pelo ex-ministro da Secretaria de Igualdade Racial, Édson Santos, o principal instrumento para convencer a sociedade sobre os caminhos da mudança.

“Temos desejo por fazer uma política que nos represente, que traga os negros, as mulheres, as pessoas com deficiência, os povos tradicionais, dos territórios sagrados. Representamos um projeto de democracia que precisa permanecer vivo. Sou a única mulher concorrendo a governadora. Eu sou muito política, sempre fui e com essa sinceridade e honestidade vamos devolver a política aos cidadãos”, almeja Márcia Tiburi.

Legenda prestigiada, mas de atuação ainda incipiente fora dos limites da zona sul, o Psol optou pelo vereador Tarcísio Motta, tendo na companhia da chapa Ivanete Silva e Chico Alencar, na briga por uma das cadeiras do senado.

Na outra ponta, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), persegue a manutenção na Câmara Baixa depois de ter retirado a candidatura à presidência diante da intenção de voto quase nula.

No Rio que continua lindo, mas com as televisões permanentemente ligadas na Rede Globo, o cristo redentor pode novamente abrir os braços sinalizando à esquerda como nas eleições de Leonel Brizola, Saturnino Braga e Benedita da Silva. O chiado carioca vai além do sotaque e reclama a necessidade da mudança que pode chegar às urnas.

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