Política

“Golpe da madrugada”, o ensaio do acordão

Na Câmara, a primeira tentativa de anistia fracassa, mas não se pode descartar que outras virão

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Era para ser só mais uma segunda-feira vazia na Câmara dos Deputados, mas as horas finais do 19 de setembro reservaram ao País um momento emblemático da conjuntura atual. Na calada da noite, foi colocado em votação um projeto de 2007 que tinha um objetivo único: anistiar os políticos que utilizaram caixa dois em suas eleições anteriores.

Para quem acompanhou a sessão e sua repercussão, ficou claro que o “golpe da madrugada”, como batizou o deputado Esperidião Amin (PP-SC), era o primeiro passo para instalar um acordão pós-impeachment com o intuito de obstruir as investigações da Operação Lava Jato e livrar a cara de muitos envolvidos. Nesta empreitada, além da perna legislativa, há outras, que envolvem mudanças recentes na Advocacia-Geral da União, na Procuradoria-Geral da República e no BNDES, como mostra reportagem de capa de CartaCapital publicada na sexta-feira 16.

Com Michel Temer no exterior e Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, despachando no Palácio do Planalto, coube a Beto Mansur (PRB-SP), primeiro secretário da Câmara, comandar a sessão e levar adiante a manobra. O projeto surgiu na pauta sem que se soubesse qual deputado ou partido pediu sua inclusão e sem que os parlamentares tivessem conhecimento sobre seu conteúdo.

Escolhido como relator, Aelton Freitas (MG), líder do PR, afirmou não saber do que se tratava. O próprio Mansur disse desconhecer o conteúdo. “Pediram para que eu presidisse a sessão. Eu não sei um artigo desse projeto, uma linha. Eu estava apenas cumprindo minha função de brasileiro. Não tenho nada a ver com caixa 2, não estou envolvido na Lava Jato”, afirmou Mansur, a se recusar a dizer quem seria o autor do pedido para votar. 

Há tempos, negocia-se no Congresso um perdão do caixa 2 eleitoral, como mostrou reportagem de capa de CartaCapital publicada na sexta-feira 16. A ideia vinha sendo discutida inclusive por um representante do Planalto, o ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima.

A proposta possui um verniz nobre, a criminalização de doadores e recebedores de recursos “por fora”, uma irregularidade alcançada hoje somente pela legislação eleitoral. Mas esconde uma ideia talhada para esterilizar as delações de Odebrecht e da OAS negociadas no âmbito da Operação Lava Jato.

Dirigentes presos das empreiteiras estão propensos a apontar o dedo para poderosos do pós-impeachment, como Temer (teria pedido 10 milhões de reais em dinheiro à Odebrecht), o chanceler José Serra (teria levado 23 milhões de reais da mesma empreiteira no exterior) e o senador tucano Aécio Neves (teria ficado com 3% de uma obra da OAS em Minas).

A proposta discutida no submundo da Câmara prevê a criminalização futura do caixa 2 e, ao mesmo tempo, a anistia de indecorosidades passadas até eleição de 2014, a última com autorização para financiamento empresarial. Só escapariam do perdão repasses nos quais ficasse comprovado que o recebedor, antes ou depois do pleito, beneficiou seu mecenas com um “ato de ofício”. Exemplo: um ministro que tenha armado uma licitação fajuta de modo a favorecer seu financiador. Nesta situação hipotética, candidato e patrocinador não teriam anistia e poderiam ser processados criminalmente.

Um dos principais negociadores do perdão é um deputado do PMDB do Maranhão, Hildo Rocha, vice-presidente da Comissão de Finanças e Tributação. Na sessão desta segunda-feira 19, Rocha tentou peitar Beto Mansur e insistiu para que houvesse votação. “Vamos testar o plenário.Teste o plenário”, disse ao microfone. 

Para Rocha, todo dinheiro doado por empreiteira em eleições é propina disfarçada, por isso lidar com caixa 2 apenas por meio da lei eleitoral seria insuficiente. Como se trata de um setor recordista de contribuições de campanhas, diz ele, todos os partidos interessam-se pelo tema e participaram de conversas prévias sobre o tema.

Deputado de primeiro mandato, Rocha pertence ao grupo político da família Sarney no Maranhão. O chefe do clã, José Ribamar, considera que uma delação da Odebrecht será “uma metralhadora (de calibre) ponto 100”, conforme confidenciou ao ex-presidente da Transpetro Sergio Machado, em uma conversa gravada ocultamente por este último, hoje um delator da Lava Jato.

Quando a Operação foi campo pela primeira vez, no dia 16 de março de 2014, o doleiro Alberto Youssef, uma das estrelas do espetáculo, foi preso em um hotel no Maranhão. Carregava 1,4 milhão de reais em espécie. Consta que para fertilizar campanhas por lá na eleição que aconteceria dali a sete meses.

Um veterano conhecedor da Câmara dizia há alguns dias que, por ser delicado e ter potencial para atrair uma saraivada de críticas, o perdão, se fosse levado adiante, seria objeto de uma tramitação relâmpago e semiclandestina. Seria incluído com discrição no texto de alguma lei, para não chamar a atenção da sociedade. Exatamente como aconteceu nesta segunda-feira 19. 

“Eu vi o texto que seria votado. É um texto que criminaliza o caixa 2 eleitoral, o caixa 2 partidário, criminaliza inclusive quem doar para caixa 2, e na discussão havia a hipótese de ter um artigo que produziria a extinção de pena, de punibilidade para atos de caixa 2 para o passado”, afirmou o líder do PCdoB, Orlando Silva (SP). 

Marcos Rogério, do DEM-RO, disse que diversos partidos estavam envolvidos no acordão. “A maioria dos partidos estava trabalhando esse texto, articulando, e não tiveram posicionamento prévio para enfrentar, dizer que não aceitavam essa votação”, disse à TV Globo. “Tinha partido do governo e da oposição no mesmo entendimento… quando o Plenário reagiu, aí se posicionaram para retirar de pauta o projeto, mas a conversa estava sendo tratada e interessava ao dois lados, infelizmente”, disse. 

Ao que consta, o partido de Rogério estava envolvido nas negociações, que incluíam também o PMDB, PSDB, PR, PP e PT. O projeto, entretanto, dividiu algumas bancadas, o que ficou exposto no Plenário.

A resistência dos deputados durante as discussões foi fundamental para conter o ímpeto de Beto Mansur. Deputados como Esperidião Amin, Miro Teixeira (Rede-RJ), Alessandro Molon (Rede-RJ), Ivan Valente (PSOL-SP) e Joaquim Passarinho (PSD-PA) se mobilizaram contra as decisões de Mansur, até que ele desistiu e retirou o texto da pauta. “Isso aqui é um escândalo, é um escárnio, é uma falcatrua, é uma bandalheira que estão querendo fazer aqui para livrar a cara de algumas centenas ou dezenas de parlamentares e empreiteiros também”, disse Ivan Valente.

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