Política

“Há lugar para o islã político, mas dentro das regras”

Para Mohamed el-Dahshan, a Primavera Árabe não morreu e a solução para a região passa pela participação de grupos como a Irmandade Muçulmana na política

Soldado monta guarda em frente ao Tribunal Constitucional do Egito, no Cairo, nesta segunda-feira 19
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De Nova York

Professor especializado em desenvolvimento econômico da Universidade Ain-Shams, do Egito, mestre em Relações Internacionais e Desenvolvimento Público nas universidades de Harvard, nos EUA, e no Instituto de Estudos Políticos de Paris, Mohamed el-Dahshan também é consultor de diversas entidades internacionais, como o Banco Mundial e o Banco de Desenvolvimento da África, e de governos do Oriente Médio, como o dos Emirados Árabes Unidos e da Autoridade Palestina. Em entrevista exclusiva concedida no fim de semana à CartaCapital o acadêmico já previa algo como a quarta chacina de civis por forças ligadas ao governo egípcio desde o golpe militar de 3 de julho. Al-Dashshan afirma que a ajuda militar dos EUA ao Egito jamais será suspensa e diz que ninguém no Oriente Médio – inclusive ele – se lembra do discurso do recém-empossado presidente Barack Obama no Cairo, um histórico chamamento às populações muçulmanas para um “novo começo” de relacionamento com o mundo ocidental.

Ao mesmo tempo, o economista, cientista político e jornalista premiado – cujos textos aparecem amiúde na Foreign Policy, na Yale Global Magazine e no Guardian, entre outros – considera prematura a decretação do fim da Primavera Árabe, diz que grupos seculares e liberais pró-golpe começam a repensar seu apoio aos militares, denuncia as massas que saíram nas ruas para apoiar o direito do governo de atacar os militantes da Irmandade Muçulmana com força máxima e aposta que os grupos islâmicos não boicotarão futuras eleições, retornando para a posição anterior a da Primavera Árabe.

Um dos autores dos Diários da Praça Tahrir, memória coletiva dos 18 dias da Revolução Egípcia, e responsável, ele jura, por cunhar o termo “desmurabakização” do governo egípicio – uma referência ao ex-homem-forte do país, Hosni Mubarak, presidente do Egito entre 1981 e 2011, que pode, de acordo com seu advogado de defesa, ser liberado da prisão onde foi encarcerado depois de ser deposto do governo -, el-Dahshan é um duro crítico da política externa da administração Obama para o Oriente Médio, com um porém: “fica difícil determinar se o ponto mais fraco foi aqui ou no Afeganistão, no Paquistão, em Guantánamo, e por aí vai”.

Os principais trechos da conversa seguem abaixo:

CartaCapital: Desde a última quarta-feira, quando do assassinato em massa de civis, mais de 1000 pessoas morreram no Egito por conta da repressão do governo militar contra os partidários da Irmandade Muçulmana. O senhor acredita que este será o cenário do país a médio prazo? Com seus principais líderes presos ou escondidos e militantes sendo abatidos pelo novo regime, a estratégia da Irmandade Muçulmana de se manter nas ruas das grandes cidades egípcias pode resultar na derrota das forças golpistas?

Mohamed El-Dahshan: Não pode, e eles sabem disso. No entanto, há uma certa mentalidade de miliciano: a vitória não significa a derrota total do adversário, mas a criação de um cenário tal que o impeça de seguir combatendo, neste caso, por meio da pressão popular. Infelizmente, a Irmandade não percebeu que este jogo é muito perigoso, que não apenas reduzirá a possibilidade de uma parcela maior da população egípcia os apoiar mas também a aumentará a antipatia popular ao grupo. Creio que a violência de rua seguirá por pelo menos mais uma semana, incluindo, possivelmente, assassinatos [a entrevista foi feita no fim de semana, antes de Cairo reconhecer oficialmente o quarto massacre de civis desde o golpe de 3 de julho, com o assassinato de pelo menos 36 prisioneiros em custódia policial. A Irmandade Muçulmana diz que foram 52 vítimas fatais, denuncia o que qualifica de chacina, e refuta a informação do governo de que os presos mortos faziam parte de um movimento de fuga em massa de um presídio da capital].

CC: O senhor acredita que a reação do presidente Obama ao massacre de quarta-feira foi na medida certa? Seria ingênuo esperar uma posição mais dura, como a suspensão da ajuda ao governo militar?

MED: O interesse de Washington é em um Egito estável e aliado aos EUA e a Israel. Neste exato momento o governo Obama é incapaz de afirmar que isso acontecerá, daí a escolha da diplomacia do “vamos esperar para ver o que vai acontecer”. Agora, a ajuda militar americana aos EUA jamais será suspensa. Veja bem, US$ 1,3 bilhão/ano é um preço considerado não exorbitante para o que Washington vê como ameaça maior. A mudança do cenário, para os EUA, pode sair muito mais cara. A punição não vale o risco. A influência dos EUA vem diminuindo por um bom tempo, antes mesmo dos eventos de quarta-feira, e Washington sabe disso.

CC: O senhor concorda com a análise de que o Oriente Médio é o maior desastre da política externa do governo Obama? Alguém ainda se lembra do famoso discurso do recém-empossado presidente americano em Cairo, em 2009?

MED: Discurso? Que discurso? Respondendo à sua pergunta: a política externa do governo Obama é movida por interesses bem claros. Ele pode ter revelado, em 2009, ser mais esclarecido do que boa parte da elite política americana, mas a ênfase – central no discurso – de parceria com as populações da região é muito menos proeminente do que, por exemplo, defender as alianças de Israel na região. No entanto, fica difícil afirmar com certeza de que o Oriente Médio foi o maior desastre da política externa desta administração. Há Afeganistão-Paquistão, Guatánamo e outras mais. Só se é preciso escolher a carta do baralho de desastres.

CC: Analistas nos EUA e na Europa traduzem o massacre de quarta-feira como o fim extra-oficial e trágico da Primavera Árabe. O senhor acredita que mais e mais lideranças e militantes de grupos seculares que apoiaram o golpe de julho se arrependerão da mudança brusca de poder com a repressão cada vez mais dura do governo militar?

MED: Há um rápido retorno a métodos usados na era Mubarak: estado de sítio, civis julgados por militares, por exemplo. Mas ainda acho um pouco melodramático se falar em fim da Primavera Árabe. Vejo os acontecimentos como um imenso passo atrás. Já deveríamos estar vivendo um momento de crescimento econômico e reconstrução do Egito.

CC: Iremos ver mais conflitos religiosos no Egito nas próximas semanas?

MED: Muitos, quiçá a maioria, dos cristãos apoiaram o golpe militar. Do mesmo modo que o fizeram milhares de muçulmanos. A violência religiosa, especialmente contra os cristãos, não é uma reação ao golpe, mas o ápice de uma retórica sectária há muito presente no Egito, dirigida por grupos radicais islâmicos e de extrema-direita. A Igreja Copta não foi especialmente mais defensora do golpe do que a principal instituição oficial de ensino do Islã no país, o Azhar. O fato é que os elementos mais violentos da Irmandade Muçulmana estavam buscando um alvo para se vingarem. E os mais fáceis são escolas e templos religiosos.

CC: Grupos terroristas – notadamente a Al-Qaeda – usaram o golpe militar no Egito e a dura repressão aos simpatizantes da Irmandade Muçulmana como prova de que não há possibilidade de experiência democrática com aplicação da lei islâmica. O senhor acredita que o modelo turco – mesmo levando-se em conta as raízes seculares do estado fundado por Mustafá Kemal Ataturk – é uma exceção?

MED: Antes de mais nada, os partidos afinados com o islamismo não boicotarão eleições futuras. É sempre bom lembrar que no Egito o segundo maior partido islâmico, o Nour, posicionado à direita da Irmandade Muçulmana no tabuleiro político local, apoiou o golpe na esperança de conquistar a maioria do voto islâmico no próximo pleito. As comparações com o modelo turco são interessantes, mas as possibilidades de serem replicados fora da Turquia são muito remotas. Um dos aspectos mais importantes do legado do primeiro-ministro Recep Erdogan é o desmantelamento do que ele chama de “Estado Profundo”, incluindo suas teias nas Forças Armadas, no mundo empresarial e no funcionalismo público. Basicamente, o combate aos que não comungam do Kemalismo. Um esforço político inicialmente de resultados interessantes mas que acabou se revelando uma caça às bruxas. No fim das contas, o mundo islâmico não deveria se espelhar no modelo turco, mas em algo melhor do que o regime de Ancara. Há um lugar para o islã político na sociedade civil local, desde que seus partidários sigam as regras do jogo político. Estas, por sua vez, precisam dar vez a todos.

CC: Na semana passada o senhor escreveu sobre a atitude do Ministro da Defesa do Egito, general Abdel al-Sisi, que incitou o povo a sair às ruas em seu apoio. Na prática, o senhor escreveu, ele pedia um “mandato popular” para combater o que o governo denomina de “ações terroristas”. E que a resposta positiva de grande parte da população foi o código dado para o massacre de quarta-feira…

MED: Foi sim a mensagem que faltava para a tragédia e sim, coloco grande parte da culpa do que aconteceu nos que saíram às ruas e decidiram dar uma carta branca para o Exército. Obviamente al-Sisi não precisa de um “mandato” ou da benção do povo e estava claro que o governo militar queria ir além do golpe. Mas sejamos honestos, as pessoas que foram às ruas apoiar Sisi são, em parte, os que se deixaram enganar pela retórica do “combate ao terrorismo” e outra fração, tão numerosa quanto a primeira, os que defendem de fato o ataque do exército, com força máxima, aos civis partidários da Irmandade Muçulmana. Fiquei extremamente preocupado com a celebração de assassinatos – inclusive durante a chamada “sexta-feira da ira” – e a radicalização da retórica política, pró-violência, vindas de figuras anteriormente consideradas razoáveis por mim.

CC: Meus colegas jornalistas têm sido alvos constantes na cobertura do Egito nas últimas semanas, com relatos de assaltos, ataques físicos, assassinatos. O senhor acredita que os países da região e as grandes potências ocidentais falham em não protestar com mais intensidade sobre o ataque a profissionais da imprensa em seu país? O primeiro-ministro Erdogan pediu uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU para discutir o massacre de quarta-feira. O senhor acredita em alguma intervenção da comunidade internacional no Egito?

MED: Quando as vítimas são jornalistas locais, suas mortes raramente merecem atenção da grande imprensa ocidental. Também há o fato de que o lado responsável pelos atos de violência contra os jornalistas ser o mesmo oficialmente aliado aos EUA e aos países ocidentais. Também há a argumentação de que cobrir o Egito, hoje, é jornalismo de guerra. Os repórteres sabem o quão perigoso é, o que, naturalmente, é o estado, tristíssimo, a que chegamos. Mas no fim das contas, a mensagem é: não espere muito do resto do mundo. Intervenção? No máximo teremos condenações, dedos apontados e suspensão de ajuda econômica ao Egito. Medidas que, no fim, terão pouquíssimo impacto na situação política egípcia. O Conselho de Segurança da ONU é sabidamente um fórum impotente e suas resoluções raramente são mais do que o “menor denominador comum” da posição dos países-membros. Gostaria de ver mais pressão internacional nos próximos meses, ela poderia ajudar ao menos na proteção dos profissionais da imprensa, mas duvido que isso irá acontecer.

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