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Iniciativa pontual?

Estudantes se mobilizam pela renovação de programa de pós-doutorado para pesquisadores negros na USP

Alerta. A população negra segue subrepresentada no corpo docente, observa Carneiro – Imagem: Mariana Serafini
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“Quando entrei na USP em 1972, nós, estudantes negros, não enchía­mos uma Kombi. Agora, ver um auditório lotado só de mestres e doutores negros é um escândalo, uma satisfação imensa”, afirmou a filósofa ­Sueli Carneiro, durante encontro realizado pelos alunos do Programa de Pós-Doutorado para Pesquisadores Negros da USP. Defendeu, porém, a adoção de políticas afirmativas para mudar o perfil do corpo docente, composto majoritariamente por pessoas brancas. Sem garantir reais oportunidades de crescimento na carreira, emenda Carneiro, a equidade jamais será alcançada.

O debate na sede do Instituto de Estudos Avançados da USP, na segunda-feira 27, foi organizado por um coletivo de bolsistas da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), a primeira turma de um edital de pós-doutorado reservado exclusivamente para pesquisadores negros. Primeira e talvez a única, temem os estudantes, pois não há qualquer sinalização de que o programa, previsto para acabar em junho, será renovado pela universidade.

A educação e a ciência têm sido alvos constantes do governador Tarcísio de Freitas, outrora retratado pela mídia como um “bolsonarista moderado”. Recentemente, ele tentou obrigar as três maiores universidades públicas paulistas – USP, Unesp e Unicamp – a repartir suas receitas, fixadas em 9,57% da arrecadação do ICMS pela Constituição paulista, com outras três faculdades. Após a péssima repercussão da iniciativa, recuou na proposta. Manteve, porém, uma brecha na proposta de lei orçamentária para 2025 que pode, se aprovada pela Assembleia Legislativa, suprimir até 30% do orçamento da Fahttps://www.cartacapital.com.br/tag/fapesp/pesp, a principal agência de fomento à pesquisa no estado. Diante deste cenário, os pós-doutorandos contemplados no edital da USP trabalham com insegurança, sem saber se suas bolsas serão renovadas para o próximo período, mesmo que as pesquisas ainda não estejam concluídas.

Lançado em 2023, o edital prevê a oferta de bolsas somente até junho

“Sabemos que, quando há qualquer instabilidade no financiamento das pesquisas, os primeiros a ser cortados são os mais vulneráveis. As políticas de inclusão e reparação são sempre as primeiras a serem canceladas”, comenta a cientista política Danielle Pereira de Araújo, pesquisadora do ­IEA-USP e uma das 50 pessoas contempladas pelas bolsas da PRIP. Ela conta que o programa é fruto da intensa mobilização de estudantes e professores negros da USP. “A reserva de vagas no contexto docente é uma pauta muito cara para nós, e pouco explorada. Unimos a isso a nossa batalha pela renovação das bolsas de quem já está no programa, além de pleitearmos a institucionalização desse edital. Ou seja, queremos que ele vire de fato uma política de reparação, e não uma iniciativa pontual”, explica.

No primeiro edital, aberto em 2023, mais de mil doutores negros disputaram uma das 50 vagas oferecidas. Para Araújo, esse número evidencia que a demanda por espaços como este é altíssima, mais um motivo para defender a continuidade do programa, que abrange todas as áreas do conhecimento. Pesquisadora mais velha da turma, a advogada Marli Aparecida Sampaio, de 62 anos, lembra com orgulho de quando ingressou na Faculdade de Direito da USP, em 1989. Foi a primeira pessoa da família a sentar num banco universitário. “Para meus pais e meus irmãos, foi uma alegria imensa. Ao mesmo tempo, na minha turma de 450 alunos, eu era a única negra, até os professores me olhavam com estranhamento. Teve gente que passou os cinco anos da graduação sem nunca me dirigir a palavra. Hoje, isso está mudando, mas ainda temos um longo caminho pela frente.”

Demanda. Mais de mil candidatos disputaram as 50 vagas oferecidas no ano passado – Imagem: iStockphoto

Filha de operários de São ­Bernardo do Campo, no ABC Paulista, Sampaio precisou se desdobrar entre trabalho, estágio e faculdade. Mesmo sendo uma universidade pública, o custo de permanência era alto, a começar pelos caríssimos manuais de Direito. “A construção da minha carreira sempre foi difícil e estar hoje entre as pessoas contempladas por essa bolsa de pós-doutorado, para avançar na minha pesquisa, é uma grande felicidade.”

A sensação de solidão na trajetória acadêmica é algo que atinge grande parte de pesquisadores negros. “Quanto mais degraus a gente sobe, menos encontramos nossos pares, é um caminho bastante solitário”, lamenta a farmacêutica ­Michelle Barão de Aguiar. “Se os negros são mais de 50% da sociedade brasileira, esse quadro precisa se repetir também na universidade, deveríamos ser mais de 50% dos alunos e também dos professores.”

Os bolsistas temem a interrupção do programa após o governador tentar se apropriar das receitas da Fapesp

A pesquisadora relata que as dificuldades para mulheres e mães negras são ainda maiores. “Existe uma estrutura pronta para receber os homens, principalmente os homens brancos. Queremos sair do lugar de ser estudados para o lugar de quem contribui para o desenvolvimento científico.” Depois de trabalhar na indústria farmacêutica, lecionar em faculdades particulares e se desdobrar entre trabalho, doutorado, maternidade e cuidados domésticos, ela finalmente alcançou um patamar estável para desenvolver sua pesquisa sobre fotoproteção para peles negras. “Hoje eu trabalho num laboratório com mais de 20 anos de tradição, e ninguém nunca tinha pensado em estudar a pele negra. É um estudo inédito e tem pouquíssima literatura científica.”

Segundo a antropóloga Adriana de Oliveira Silva, a conquista de diplomas não é o suficiente para garantir o futuro profissional das pessoas negras. “Mesmo com uma excelente formação, ainda duvidam na nossa capacidade. Mesmo quando estamos na universidade como mestres ou doutores, há quem vá nos tratar como a faxineira”, lamenta. Trata-se de um preconceito enraizado na sociedade brasileira, predisposta a ver pessoas negras sempre em “lugares de subalternidade”, observa. “Ver ­pessoas negras no topo da carreira acadêmica ainda é uma exceção. Por isso, estamos lutando para este edital virar uma política pública. Nós queremos ser a regra, e não a exceção. Isso só será possível com ações afirmativas.”

Exemplo. Aguiar pesquisa a fotoproteção da pele negra, negligenciada pela indústria – Imagem: Mariana Serafini

Foi durante a residência médica no Hospital Universitário da USP que a neurocirurgiã Diana Santana se atentou para um incômodo fenômeno: as ­pessoas negras costumavam chegar ao atendimento médico de alta complexidade quando já estão com doenças mais agravadas. “Notei que muitas vezes os pacientes negros tinham desfechos piores não apenas pela gravidade da doença, eles já chegavam com a enfermidade em estágio avançado.” No pós-doutorado, ela pesquisa o impacto do racismo no atendimento de pessoas com aneurismas intracerebrais. “A pesquisa está em andamento, mas já obtive resultados sólidos e bastante preocupantes.”

Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e pró-reitora de Inclusão e Pertencimento da USP, Ana Lucia Duarte Lanna reconhece que não há garantias de renovação do edital, tampouco a possibilidade de ele ser institucionalizado. “Infelizmente, não está previsto o que os alunos reivindicam, a transformação dessa iniciativa em um programa permanente na universidade”, afirma. “Não existe nenhuma linha permanente de financiamento de pós-doutorado na USP, isso costuma ser responsabilidade das agências de fomento à pesquisa. Mas isso não significa que a gente não vá republicar um outro edital nesses moldes, ainda está em discussão.” •

Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Iniciativa pontual?’

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