Judeus pela Democracia repudiam declaração de Bolsonaro sobre nazismo

O presidente disse “não ter dúvidas” de que o nazismo foi um movimento de esquerda

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O coletivo Judeus pela Democracia classificou a fala do presidente Jair Bolsonaro sobre o nazismo como “mentirosa e perigosa”. Na terça-feira 2, o presidente visitou o Yad Vashem, Centro de Memória do Holocausto em Jerusalém, e logo após disse à imprensa “não ter dúvidas” de que o nazismo foi um movimento de esquerda.

O que o presidente parece não saber, ou ao menos não se atentou, é que a própria instituição a qual ele visitou afirma que o nazismo foi o resultado do radicalismo de extrema direita. Em seu site, a instituição traz um breve histórico sobre a ascensão do partido nazista na Alemanha entre guerras.

Segundo o coletivo, a fala do presidente é “mais uma estratégia para polemizar e fazer a mídia despender energia com uma discussão que nada diz respeito ao trabalho que ele deveria fazer”. Eles apostam que a tentativa de Bolsonaro é demonizar a esquerda.

Bolsonaro visitou o Centro de Memória do Holocausto em Jerusalém

“É um tremendo desrespeito com os judeus mortos pelo nazismo o presidente fazer uma afirmação dessa. Não podemos mudar a história de acordo com a nossa própria ideologia”, disse Guilherme Cohen, um dos idealizadores do grupo.

O coletivo Judeus pela Democracia surgiu nas eleições presidenciais de 2018 para se posicionar contra a candidatura de Jair Bolsonaro. “Para nós, não há nenhuma possibilidade de estar ao lado de alguém que fala que as minorias tem que se curvar às maiorias, ou então desaparecer. Para nós, não há nenhuma possibilidade de estar ao lado de alguém que ofende gays, mulheres, quilombolas, negros e outros grupos oprimidos”, afirma Cohen.


Mesmo após as eleições, eles continuam realizando encontros para discutir a religião e a situação política do Brasil. “Uma das mais simbólicas ocorreu em janeiro, quando lembramos a memória e a obra de Amós Oz, um grande ativista israelense”, conclui.

Rabino contesta o presidente

O rabino da Congregação Israelita Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o diálogo inter-religioso, Michel Schlesinger, também contestou a declaração do mandatário. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Schlesinger afirmou que o nazismo foi uma ação da extrema-direita europeia, embora seu oposto, a extrema-esquerda, também tenha gerado catástrofes.

“O Holocausto foi um produto do nazi-fascismo, movimentos da extrema-direita europeia. Dizer que a Shoá [Holocausto] foi criada pela esquerda é falsificar a história”, diz Schlesinger.

A verdadeira origem do nazismo

A estratégia de tentar classificar o nazismo como uma ideologia de esquerda não é nova e chegou a ocorrer no passado em vários países. Mas nunca chegou a virar um debate sério entre especialistas.

Na Alemanha, durante as pesquisas e debates sobre o Terceiro Reich, iniciados nos anos 1960, chegou a haver tentativas de classificar o regime como um movimento socialista. No entanto, há décadas não restam dúvidas, seja no âmbito acadêmico, social ou político, sobre a natureza de extrema direita do nazismo.

O debate sobre o nazismo como uma ideologia de esquerda foi levantado no Brasil a partir dos anos 2000 por Olavo de Carvalho. A visão rapidamente se espalhou por páginas brasileiras de direita na internet, ganhando adesão também entre contas de viés liberal que adotaram posições conservadoras. Entre os adeptos está o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República e atual presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

No País, os atuais defensores da visão “nazismo de esquerda” costumam se basear no nome oficial da agremiação nazista, chamada de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou NSDAP. A presença da palavra “socialista” revelaria a linha ideológica do regime. Historiadores internacionais de renome, porém, destacam que essa nomenclatura e a inclusão de políticas tidas como de esquerda no programa de governo apresentado antes das eleições de 1933 não passaram de uma estratégia eleitoral para atrair a classe trabalhadora.

Nacionalismo, antissemitismo e racismo extremos

O historiador Wulf Kansteiner, da Universidade de Aarhus, deixa claro que os nazistas jamais seguiram políticas de esquerda. “Ao contrário, propagavam valores da extrema direita, um extremo nacionalismo, um extremo antissemitismo e um extremo racismo. Nenhum especialista sério considera hoje o nazismo de alguma forma um fenômeno de esquerda. Por isso, da perspectiva acadêmica histórica, essa declaração é uma asneira”, afirma.

Segundo Kansteiner, ao jogar e argumentar com a palavra “totalitarismo”, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, tenta traçar uma fronteira entre o nacionalismo, que seria algo bom, e o socialismo, que seria algo ruim. “Historicamente isso é um disparate”, ressalta o especialista, que também é autor do livro In pursuit of German memory (Em busca da memória alemã, em tradução livre).

Peter Carrier, coordenador de um projeto de pesquisa da Unesco sobre o ensino do Holocausto, promovido pelo Instituto alemão Georg Eckert, acrescenta que o ministro comete erros ao fazer referências à teoria do totalitarismo.


“Se Araújo tivesse lido precisamente os teóricos do totalitarismo e fosse fiel a suas teses, ele deveria condenar tanto a direita quanto a esquerda, pois o totalitarismo implica que regimes autoritários de direita e de esquerda são igualmente ruins”, afirma.

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