Rosane Borges

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Jornalista, pós-doutorada em ciências da comunicação, professora colaboradora do grupo de pesquisa Estética e Vanguarda (ECA-USP), integrante do grupo de pesquisa Teorias e práticas feministas (Unicamp/Usp), conselheira de honra do grupo Reinventando a educação. Autora de diversos livros, entre eles: Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004), Mídia e racismo (2012) e Esboços de um tempo presente (2016).

Opinião

Michel Temer, o enredo do golpe e as narrativas em disputa

O chamado pelas Diretas Já é a única forma de resistir aos golpistas

Manifestante pede eleições diretas durante protesto em Brasília na tarde de quarta-feira 24. Houve forte repressão policial e dezenas de feridos
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Tão logo as conversas entre Joesley Batista (um dos donos da gigante JBS) e o presidente ilegítimo Michel Temer (sem falar do colóquio com o senador afastado Aécio Neves) ressoaram de maneira retumbante em todos os canteiros do país, muitas vozes se apressaram em sentenciar que as recentíssimas delações responsáveis por devastar quase todas as agremiações do espectro político brasileiro são a prova cabal, inequívoca, de que o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff não foi golpe.

Mesmo premidos pela voracidade do presente, mergulhados no tsunami de informações que não cessam, atônitos com o desenrolar de casos extremos que muitos vezes nos cegam, é preciso (re)nomear o que está por trás dos acontecimentos: o golpe em marcha, senhoras e senhores!

Temer é peça de um jogo forjado pelos interesses de um projeto que ele representa e capitaneia até o presente momento, fazendo ver as fendas e contradições do próprio golpe a partir do momento que é arregimentado na turma dos réus da corrupção.

Muitas tintas foram gastas para tipificar o golpe sofrido por Dilma, que se mostrou diferente dos golpes convencionais, conhecidos pelos tanques nas ruas, silenciamento da imprensa, inviabilidade institucional…

Vladimir Safatle, professor da USP, lembra que o golpe de 64 se estruturou “com a ditadura militar, na qual setores do empresariado nacional, do latifúndio, da igreja conservadora e da imprensa organizaram seus interesses em comum submetendo-se ao comando militar, que foi rapidamente impondo sua hegemonia”.

Mas, insistimos: o golpe da nossa era se trama e se urde de forma diferente (vide o que aconteceu no Paraguai, em 2012, e Honduras, em 2009).

Fazendo um paralelo do estado da arte da nossa política contemporânea com o Estado nazista, Safatle lembra que este não era composto por um corpo coeso, mas por grupos heterogêneos (o partido, o Exército, os industriais e a burocracia estatal), constituindo estruturas de poder paralelas que entravam continuamente em choque.

A bagunça só não era generalizada por conta do Füher, que aplacava os conflitos internos, figura inexistente no golpe à brasileira no século XXI, já que a reserva moral parece ter se esgotado nas raias que abrigam os supostos candidatos a síndicos do condomínio do poder neoliberal e anti-democrático.

Como testemunhamos, a direita, o judiciário, a chamada “grande imprensa” e setores reacionários (com o ativismo explícito da bancada evangélica) se irmanaram para anatemizar Dilma como a grande responsável pela crise, que prenunciava uma tripla falência no tecido social: econômica, política e moral.

Em nome “das melhores intenções e sentimentos mais nobres” esses grupos expeliram a presidenta, pondo em marcha a nova estratégia do capital em sua versão financeirizada, neoliberal e globalitária.

Cumprido o roteiro, dentro de um figurino legal, é preciso mais. Para que o golpe de fato se consuma é necessário remover os obstáculos que impeçam ou adiem a execução do projeto que se desenha no horizonte (Reformas da Previdência, projeto da bancada ruralista para o trabalho de campo, incidência das pautas fundamentalistas, pondo em xeque tímidos avanços que ocorreram na política de costumes e nos direitos sexuais e reprodutivos).

A esta altura do campeonato, Temer, mesmo sendo agente deste projeto, pode se afigurar como um monumental obstáculo para materializá-lo em virtude de sua baixíssima popularidade, das dificuldades em emplacar a maldosa Reforma da Previdência e por ter se convertido em alvo de gravíssimas acusações de corrupção.

Eleições diretas: a única forma de desobedecermos ao golpe

A única forma de interrompermos a espiral de incertezas e retrocessos que o golpe instalou é desobedecermos a sua própria lógica. Reza a cartilha da legalidade que caso Temer caia o nosso caminho será pavimentado pelas eleições indiretas – para alguns, a nossa única saída, posto que previstas na Constituição.

Há quem se aferre ao argumento de que a defesa das eleições diretas seria outra forma de golpe ou mero “casuísmo”. Reproduzo aqui as reflexões do professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Silvio Almeida:

“Não concordo com o positivismo ingênuo ou o liberalismo abstrato que defende eleições indiretas por que se deve “preservar a Constituição”. Quem quer eleições diretas, no limite, quer a aprovação de uma emenda constitucional que torne isso possível, e a mim me parece que reformar a Constituição em pontos em que ela pode ser reformada não é violar a ordem constitucional. Violar a ordem constitucional é, por exemplo, dar seguimento a um processo de impeachment sem crime de responsabilidade”

Acertou na mosca o professor Silvio Almeida. Obedecermos a uma lógica legalista, a um positivismo ingênuo, corresponde a permanecermos em um estado de sucessivas mudanças de nomes e/ou partidos sem que haja abalos no projeto anti-democrático que cimentou o golpe (não é à toa que o nome de Henrique Meireles é um dos mais palatáveis para o mercado financeiro).

Acatar esse receituário demonstrará nossa incapacidade de avançarmos para um estágio em que a participação coletiva na política está além da veiculação vertiginosa de memes e do acompanhamento sistemático da novela das delações premiadas.

Adicionalmente, podemos assinalar que este Congresso não tem legitimidade para escolher um presidente. Países que atravessaram crises semelhantes não tiveram outra saída senão antecipar as eleições, como foi o caso da Argentina em 2001.

O editorial do último domingo do jornal O Estado de São Paulo insiste que é preciso manter a boa rotina das Reformas em curso, as únicas capazes de viabilizar a tão almejada estabilidade política e econômica. É preciso que desobedeçamos a exortação do Estadão, um dos tentáculos do golpe, e atribuamos um renovado sentido aos acontecimentos que vêm demolindo o que restou da República e da democracia, se é que restou.

A propósito, o filósofo Gilles Deleuze dizia que não devemos perguntar qual é o sentido de um acontecimento, porque o acontecimento é o próprio sentido.

Para ele, é sempre um acontecimento que nos leva a perguntarmos: o que se passou? No que respondo para o caso em tela: um golpe. O que se passou para que chegássemos nisso? Um golpe.

E agora, o que vai se passar?

A resposta para esta última pergunta dependerá, em muito, da nossa disponibilidade para protagonizarmos um processo de mudanças profundas capazes de subverter as regras de um jogo impostas por quem assaltou o poder desavergonhadamente. Na trilha de Deleuze, um acontecimento é a redistribuição das potências.

É preciso, pois, que essa redistribuição esteja em consórcio com um projeto emancipatório de país. Caso recuemos nessa tarefa, provavelmente seremos tragados por sucessivos retrocessos.

Como bem relatou a personagem do romance Hibisco Roxo, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie: “golpes levavam a mais golpes, disse Papa, contando-nos sobre os golpes sangrentos dos anos 1960. Um golpe sempre iniciava um ciclo vicioso”.

Desobedeçamos, portanto: contra o golpe, eleições diretas já!

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