Política

“Nunca fomos vistas como nada além de material para casamento”

Filme francês faz um retrato amargo da infância de reis e rainhas usados como moeda de troca para garantir a estabilidade na Europa do século XVIII

A infanta da Espanha Anna Maria Victoria, casada aos 4 anos em acordo entre reinos, em cena do filme "Troca de Rainhas"
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Em 1721, a infanta da Espanha Anna Maria Victoria, de 4 anos, deixou a casa dos pais para viajar em uma carruagem até a França. Lá, era esperada pelo futuro marido, o rei Louis XV, de 11 anos. No caminho contrário, Louise-Elisabeth d’Orleans, filha do regente francês, de 12 anos, chegava à Espanha para se casar com o príncipe herdeiro Louis, de 11 anos.

O acordo entre as casas reais colocava fim a um sangrento conflito entre os dois reinos. As filhas eram a moeda de troca.

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A história é contada em Troca de Rainhas, filme de Marc Dugain baseado no livro L’Échange des Princesses, de Chantal Thomas, que estreou na quinta-feira 16 no circuito comercial após ser indicado ao Prêmio César e exibido no Festival Varilux de Cinema Francês.

O filme acompanha a travessia, a chegada, a recepção e, principalmente, a rotina entre o tédio e a angústia das crianças nos palácios. A fotografia sombria dos salões e quartos reais reforça o choque quando elas são observadas à luz do século 21, quando o conceito de infância e adolescência, nascido décadas antes, se consagra (ou deveria estar consagrado) como garantia de direitos fundamentais.

Na realeza europeia do século 18, esses conceitos eram ainda ficção científica. Longe das tintas épicas dos quadros de reis e rainhas, a infância era estraçalhada pela única expectativa que os herdeiros deveriam honrar: a procriação.

“Assim como vampiros, drenam nosso sangue como os médicos que nos enviam. As gestações fazem o resto. É necessário ser cego para não ver isso, mesmo como princesas, mas nunca fomos vistas como nada além de material para casamento”, diz, no momento alto do filme, uma das cuidadoras da rainha Anna Maria Victoria, que aos 4 anos já tinha a evolução do corpo examinada diariamente pelos médicos reais.

Todos no reino estavam ansiosos por saber quando estaria apta para gestar um bebê. A espera era acompanhada pelo terror em fracassar e ser “devolvida”, como um brinquedo que não funciona.

Dela dependia a linhagem, e também a paz entre os reinos. Uma missão e tanto para quem passava o tempo no balanço entre bonecas no jardim e tinha medo de dormir sozinha – um medo também confessado pelo rei, de quem a coroa não impedia de ser aliciado por homens mais velhos.

Na outra ponta, a Espanha, o tratamento digno de uma rainha à jovem Louise-Elisabeth d’Orleans era, na verdade, marcado pelo desprezo dos sogros, o rei Filipe V e a rainha Isabel, dois fanáticos religiosos com quem ela mantinha uma relação de desconfiança e hostilidade em uma casa que não era a dela.

Diferentemente do imaginário, os dias de rei ou de princesa não eram preenchidos apenas por caprichos e a disposição dos súditos, mas por todo tipo de violência, física e psicológica, em nome de acordos que extrapolavam os próprios corpos, fronteiras e vontades.

Isso quase dois séculos após o príncipe Hamlet, de Shakespeare, referendar a crença no “Eu” como elemento fundante do mundo moderno. O conceito de sujeito chegou antes para os súditos – as palavras têm raiz comum no latim. Para a monarquia, estar vivo era cumprir um dever e se destituir de qualquer subjetividade ou controle do próprio destino. Gerar filhos era tudo o que se esperava delas.

Apesar de criados desde cedo para a missão, os jovens reis, rainhas, príncipes e princesas não estavam isentos a conflitos entre destino arranjado e a consciência dos próprios desejos. A bolha dentro da qual estavam encarcerados era frágil; não os distanciava sequer das doenças da época.

Ao escancarar esses conflitos, “Troca de Rainhas” humaniza também a realeza. E, como uma piscadela, traz para o presente questões que ainda assombram as escolhas individuais quando o tema é casamento – uma aliança, vale lembrar, construída desde a infância em cima das histórias romantizadas sobre príncipes de princesas.

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