Três meses antes de Bolsonaro se apropriar de joias, governo abandonou proposta para restringir presentes a presidentes

A iniciativa tinha como objetivo formalizar uma decisão do TCU que limitou os itens que poderiam ficar com o presidente ao fim do governo

Foto: JOE RAEDLE/GETTY IMAGES NORTH AMERICA/Getty Images via AFP

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Três meses antes de Jair Bolsonaro se apropriar de joias oferecidas por autoridades da Arábia Saudita ao Estado brasileiro, o governo abandonou uma proposta de decreto para restringir os presentes, recebidos durante o mandato, que o chefe do Executivo poderia levar consigo ao deixar o Palácio do Planalto.

A iniciativa, elaborada pela Casa Civil, tinha como objetivo formalizar uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) que limitou os itens que poderiam ficar com o presidente ao fim do governo.

O documento, ao qual O Globo teve acesso, deixava claro que produtos recebidos “protocolarmente, em decorrência de relações diplomáticas vigentes” não poderiam ser incorporados ao acervo privado do presidente da República. Bolsonaro, entretanto, não assinou a proposta de decreto, condição necessária para que o texto entrasse em vigor.

A Polícia Federal instaurou um inquérito para investigar o destino dado às joias sauditas. As peças chegaram ao país em outubro de 2021 por meio do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, escalado para representar Bolsonaro num evento no exterior. Quando ele retornou ao Brasil, a Receita Federal confiscou um estojo de joias avaliadas em R$ 16,5 milhões. Elas estavam com um assessor de Albuquerque e não haviam sido declaradas.

Tentativas de reaver peças

Na mesma ocasião, porém, o ministro conseguiu passar com outra caixa de joias, contendo relógio, anel, um par de abotoaduras, caneta, e uma espécie de rosário.


Esse material foi entregue a Bolsonaro mais de um ano depois, em novembro de 2022. Ao invés de repassá-lo ao acervo histórico da Presidência, Bolsonaro o incorporou aos seus bens pessoais. O caso foi revelado pelo jornal O Estado de São Paulo.

A proposta de decreto que regulamentava o assunto, jamais publicado, tem data de agosto de 2022. Àquela altura, a operação dos assessores diretos de Bolsonaro para tentar reaver as joias apreendidas pelas Receita já estava em curso. A PF investiga se o material seria entregue à então primeira-dama, Michelle.

O texto do documento foi redigido pela Casa Civil de Bolsonaro. À época, a pasta estava sob o comando do hoje senador Ciro Nogueira (PP-PI). O decreto tinha como objetivo “melhor definir os bens que integram os acervos documentais privados dos presidentes da República”, de acordo com documento assinado pelo então subchefe de Assuntos Jurídicos da Presidência, Pedro de Souza.

Procurado, Souza não respondeu aos contatos.

O decreto foi gestado para atender a recomendações do TCU. O tribunal havia concluído uma investigação do paradeiro de presentes recebidos pelo presidente Lula em seus dois primeiros mandatos e pela ex-presidente Dilma Rousseff. A Corte determinou que ambos devolvessem artigos recebidos como chefes de Estado.

Para evitar a repetição do problema, recomendou que a Casa Civil alterasse a legislação para deixar claro quais tipos de presentes poderiam ser levados após o término do mandato. A minuta do decreto detalhava ainda que o titular do Palácio do Planalto não pode tomar para si presentes recebidos em eventos com chefes de Estado em agendas no exterior ou durante visitas dessas autoridades ao Brasil.

A exceção seriam itens de natureza perecível ou “personalíssima”. O próprio TCU classifica como de natureza personalíssima peças de vestuário e perfumes, entre outro — e exclui joias dessa lista.

“Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, disse à época o ministro do TCU Walton Alencar, relator daquele caso.

O próprio Bolsonaro confirmou, na quarta-feira, em entrevista à CNN Brasil, ter ficado com um dos conjuntos de joias enviados pelos sauditas após uma visita ao país do então ministro de Minas e Energia.

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