Saúde

Parto ou petróleo?

Enquanto a saúde for um meio de enriquecimento para uns, a maioria continuará a adoecer

Close-up hand check of pregnancy in hospital
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A crítica à desumanização da medicina e dos profissionais de saúde, especialmente dos médicos no Brasil, não é nova. Qualquer conversa corriqueira sobre a saúde de um parente ou de um amigo abrirá espaço para frases como “nem olharam na nossa cara”, “tratam dos exames e não dos pacientes” ou ainda “me atenderam em quinze minutos e não perguntaram nada”. Há uma sensação geral de que estão interessados apenas em números, cifrões, horários e metas, considerando pacientes como corpos rentáveis e não seres humanos em toda sua complexidade.

Apesar de ter registro na categoria e reconhecer que existem profissionais que constroem diariamente um cuidado menos duro, não estou aqui para defender médicos. Meu objetivo é explorar de onde vem esse desgaste nas profissões de saúde. Se desejamos construir um caminho de saída que vá além de iniciativas individuais, é imprescindível entender a origem dessa dita desumanização.

Faça um exercício. Você se lembram em qual maternidade nasceu ou qual foi o primeiro hospital em que esteve na infância?

Para quem conseguiu lembrar, eventualmente, de um hospital privado, é muito provável que ele já tenha sido incorporado por uma rede de saúde, ou até revendido para uma outra ainda maior. Caso a lembrança tenha sido de um hospital público, o esperado é que tenha sido entregue à administração privada através de uma Organização Social de Saúde. Vocês perceberá que o setor de saúde segue a mesma lógica do agronegócio, bancos ou construção civil, onde o mercado dita os passos e o que rende mais prevalece.

Com o site de pesquisa aberto, investiguem de onde vem o capital dessa grande rede hospitalar. Na disputa da saúde no Brasil, é engolir ou ser engolido, e para sobreviver, é preciso atrair investidores. Não é à toa que as maiores redes hospitalares do país têm capital aberto. Se o objetivo do profissional de saúde nem sempre é o cuidado, o do investidor nunca foi e nunca será.

Para aqueles que investem em serviços hospitalares e para as diretorias das grandes redes, o atendimento em saúde é um negócio como qualquer outro: um meio para escalonar lucros. Entre parto e petróleo ou fratura e frango, o investidor escolhe o que paga mais. Pagar mais geralmente está associado a produzir mais.

Como em uma fábrica de biscoitos, a administração busca processos para redução de custos e aumento de produção. Como fazer isso? Certamente, a solução passa por negociar com fornecedores e otimizar rotinas de trabalho. No entanto, também inclui terceirizar contratações, aumentar a carga de trabalho, reduzir a autonomia dos profissionais e optar por tratamentos mais lucrativos.

A mercantilização da saúde é uma expressão que surge de maneira consistente nas discussões teóricas. Mas é, mais do que uma teoria, um elemento que atinge vidas, tanto de profissionais quanto de pacientes. Transformada em mercadoria, a saúde cumpre o mesmo ritual de qualquer processo de linha de produção: afasta os profissionais de seus propósitos e de seus processos de trabalho. Não saber o nome do último profissional de saúde que te atendeu é tão esperado quanto não saber o nome de quem produziu seus últimos sapatos.

Quantas vezes você, ao buscar atendimento, se sentiu realmente ouvido pelo médico? Esse tipo de cuidado se torna cada vez mais raro, e é um reflexo direto da desumanização do sistema. Ou seria o oposto? Uma vez que o processo de mercantilizar a vida é o meio e o fim de toda a atividade humana no capitalismo, o atendimento em quinze minutos é a real e cruel face do que o gênero humano, nesta sociedade, criou para cuidar de si.

Colocar a saúde no âmbito de todo processo de produção de riquezas da sociedade facilita a compreensão e ajuda nos questionamentos. Profissionais de saúde são trabalhadores que sofrem as consequências de um modelo de ganhos que desconsidera a vida de todos, tanto de quem trabalha quanto de quem usa os sistemas de saúde. Entendermos saúde enquanto necessidade humana fundamental é uma questão emergente. Enquanto a saúde for um meio de enriquecimento para uns, a maioria continuará a adoecer.

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