Sociedade

Caso Adriana Ancelmo: o direito à prisão domiciliar negado a ricas e pobres

Mulher de Sérgio Cabral conseguiu benefício para cuidar dos filhos, mas decisão foi revogada para não “gerar expectativas” nas demais presas

Adriana Ancelmo e o marido, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral: presos pela Operação Lava Jato
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Atendendo a um pedido do Ministério Público Federal, a Justiça revogou na segunda-feira 21 a prisão domiciliar da advogada Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ).

O benefício havia sido concedido em decisão de primeira instância na sexta-feira 17, para que a ex-primeira-dama pudesse cuidar dos filhos de 11 e 14 anos do casal, mas Adriana nem chegou a sair do Complexo Penitenciário de Bangu. Ela foi presa em dezembro de 2016 pela Operação Calicute, um desdobramento da Lava Jato.

O direito negado a Adriana é garantido às mulheres grávidas e/ou que tenham filhos de até 12 anos de idade. Desde março de 2016, com a aprovação do Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257) e a mudança do artigo 318 do Código de Processo Penal, essas mulheres podem ter a prisão preventiva substituída pela prisão domiciliar – homens também têm esse direito, desde que sejam os únicos responsáveis pelos filhos de até 12 anos. A questão também encontra amparo nas Regras de Bangkok, conjunto de diretrizes para o tratamento de mulheres presas aprovado na Assembleia Geral da ONU de 2010.

Na prática, porém, a garantia desse direito é algo raro. E foi essa realidade de violações que sustentou um dos argumentos do MPF contra Adriana Ancelmo: para os procuradores, conceder prisão domiciliar à ex-primeira-dama representaria uma “enorme quebra de isonomia” perante outras mulheres.

Responsável por julgar o recurso no Tribunal Regional Federal da Segunda Região, o juiz Abel Gomes concordou com a tese, e o benefício foi revogado. Em sua decisão, Gomes afirma que a prisão domiciliar de Adriana “poderia gerar expectativas vãs ou indesejáveis para as demais mulheres presas que até hoje não foram contempladas por tal substituição”.

Para Luciana Boiteux, professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o caso é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. “Em vez de avançar para reafirmar um direito, nós negamos a própria existência desse direito sob a argumentação de que ele não se aplica amplamente”, afirma. “Vejo com muita preocupação que o nível do debate nacional seja este”, continua Boiteux.

A decisão que inicialmente beneficiou Adriana Ancelmo foi recebida como uma oportunidade para discutir a aplicação de uma regra que não é respeitada. De acordo com a defensora pública Arlanza Rebello, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a questão ainda esbarra no conservadorismo do Judiciário.

“Essa não tem sido uma lógica facilmente implementada nos tribunais, e o caso da Adriana é como uma porta que se abre para essa discussão. É um direito legítimo”, diz Rebello. “A mudança de legislação tem que vir acompanhada de uma mudança de cultura, e o nosso sistema Judiciário continua extremamente conservador. A resposta para qualquer tipo de ação é o encarceramento”, critica. Hoje, cerca de 40% da população carcerária é composta por presos provisórios.

O sistema penitenciário brasileiro é carente de dados sobre maternidade, e até mesmo o Infopen – Mulheres (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), divulgado em 2015 pelo Ministério da Justiça, é omisso nessa questão.

Coube a organizações da sociedade civil fazer uma estimativa: de acordo com relatório divulgado em 2012 pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e pela Pastoral Carcerária, cerca de 80% das mulheres presas em São Paulo são mães

Garantir a presença das mães no convívio familiar é um dos objetivos do Marco Legal da Primeira Infância. Para Boiteux, a não preservação desse direito pode ter graves consequências. “Essas crianças já estão expostas a uma vulnerabilidade altíssima, e a ausência do pai ou da mãe pode gerar um impacto absolutamente negativo no futuro. Como o Estado vai lidar com a situação se lava as mãos dessa maneira?”, questiona a professora.

Tráfico de drogas

guerra às drogas é a principal responsável pela explosão do encarceramento de mulheres. Enquanto o número de homens presos cresceu 220% entre 2000 e 2014, a população feminina no sistema penitenciário aumentou mais de 500% no período. Segundo dados do Infopen, das 37 mil mulheres presas no País, mais de 60% respondem pelo crime de tráfico de drogas.

De acordo com Mariana Lins, advogada do ITTC, o Judiciário trata o narcotráfico como um crime grave, mas não há um olhar para a situação específica da mulher. Além disso, a fragilidade do sistema brasileiro permite recortes classistas e racistas e possibilita, ainda, que usuárias sejam enquadradas como traficantes – distorção que também atinge os homens.

“O principal argumento utilizado pelos juízes para justificar a prisão é a gravidade abstrata do crime: o tráfico é um crime que gera um perigo social, é grave em si mesmo. Não é levado em consideração o caso concreto. Por exemplo: qual é a função da mulher naquela atividade? Ela é usuária ou não?”, critica a advogada. “No geral, as mulheres presas no Brasil são pobres, negras, moradoras de regiões periféricas, que cometeram delitos muitas vezes destituídos de violência ou grave ameaça.”

Para a professora Boiteux, a lógica da guerra às drogas contamina todo o debate jurídico. “Há uma banalização da prisão provisória. No Judiciário, a punição antecipada é vista como necessária para fazer valer algum tipo de concepção de segurança pública, e existe um esforço para que sejam mantidos os presos provisórios, especialmente para o crime de tráfico”, afirma. “No caso das mulheres, esse discurso moralista de segurança pública atinge também as mães e as grávidas, enquanto o que deveria prevalecer é o princípio da presunção de inocência e os interesses dos filhos, das crianças.”

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