Sociedade

“Na Maré, muitos que estão morrendo nada têm a ver com o crime”

Pesquisadora explica a rejeição dos moradores à presença do Exército e das polícias no complexo carioca

Pesquisadora afirma que o Estado se sente autorizado a usar tanques de guerra nas ruas e determinadas formas de abordagem que violam direitos dos moradores
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Entre abril de 2014 e junho de 2015, o Exército brasileiro ocupou o complexo para estabelecer as condições necessárias para a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora, o que não aconteceu por falta de verba.

Segundo pesquisa realizada por Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, a Ocupação da Maré pelo Exército é vista com maus olhos pela maioria dos moradores da comunidade. O levantamento revele que, para 70% da população da Maré, a presença das Forças Armadas não aumentou a sensação de segurança na região. Pelo contrário: mais de 40% relataram sofrer agressões verbais e quase 60% se sentiram inseguros durante as abordagens.

Na entrevista a seguir, Eliana Silva explica como espaços a exemplo do Complexo da Maré são vistos pelas forças de segurança pública como “arenas de guerra e extermínio” e os moradores como inimigos do poder público. 

CartaCapital: Em sua pesquisa, a senhora revela a sensação de insegurança da população na Maré em operações lideradas pelas forças de segurança: os conflitos aumentam e a insegurança também. Em áreas controladas por Grupos de Criminosos Armados, os moradores chegam a ter uma percepção de insegurança até menor. Por que isso ocorre?
Eliana Silva: A percepção de insegurança dos moradores da Maré é até menor em relação a outras partes da cidade. Mas esta sensação está relacionada apenas determinados crimes, como assaltos e estupros. Já em relação a crimes decorrentes de conflitos entre forças de segurança pública e grupos criminosos armados, os moradores se sentem mais inseguros em comparação ao restante dos cariocas.

Isso tem a ver com a forma como as Polícias Militar e Civil e o Exército atuaram no momento da ocupação dentro da Maré. Historicamente, a polícia tem uma ação muito violadora. A abordagem é preconceituosa, desrespeitosa. Ao mesmo tempo há a invasão das casas, onde os policiais também cometem violações, sem nenhum mandado para cumprir. O Exército, em determinado momento da ocupação, foi adquirindo uma prática muito próxima da experiência que os moradores têm com a polícia.

CC: A organização Save the Children alertou, no começo do ano, que as crianças sírias apresentam severo estresse emocional e podem crescer como uma geração perdida devido aos traumas da guerra. As crianças da Síria são as crianças do Complexo da Maré? Quais direitos são os direitos violados dessas crianças?
ES: Eu acredito que não. Do ponto de vista objetivo, acredito que na Síria há um momento político específico de guerra, no qual há uma quebra geral do cotidiano dos moradores. No caso da Maré e de outras favelas, tem-se um cotidiano com um enfrentamento estabelecido como parte da rotina, de que alguma maneira se naturaliza. Então, olhando objetivamente, há uma diferença neste processo.

Podemos apontar como semelhança o fato de as crianças na Maré também sofrerem os efeitos dos conflitos armados, ao conviver diariamente com pessoas armadas na rua, com determinados limites estabelecidos nas ruas. Muitas crianças não têm o direito à educação. Ano passado tivemos, na Maré, 20 dias em que as escolas ficaram fechadas por conta de conflitos armados entre a polícia e os GCAs ou entre esses dois grupos. Vinte dias significa 10% da frequência que uma criança deveria ter ao longo do ano, 200 dias. É óbvio que de alguma maneira tem um problema de saúde para se pensar do ponto de vista psicológico e subjetivo, de quanto essa realidade afetará essas crianças.

CC: O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) atua em uma escola da rede estadual no Complexo da Maré instruindo as crianças em como agir durante conflitos. O que revela a presença da Cruz Vermelha, que atua em país como Afeganistão e Síria, no Complexo da Maré?
ES: Esse tipo de procedimento é válido como resposta a um contexto específico em que muitas vezes não há caminhos estabelecidos pelo Estado. A sociedade civil, então, busca outros caminhos. Mas, a partir do que eu conheço do conteúdo dessas formações, elas são focadas nos momentos de guerra e na ideia de que as pessoas têm de se comportar de uma determinada forma no momento do conflito. Porém, mais do que considerar que a Maré vive em guerra, é considerar não existir nas favelas o direito à segurança pública.

É importante ressaltar que a escolha do tipo de crime a ser enfrentado tem a ver com a maneira como o Estado olha para a população, estabelecendo um enfrentamento. Como o enfrentamento às drogas como crime principal a ser combatido. Essa guerra às drogas tem a ver com a falta de compromisso do que é preciso ser estabelecido nas favelas em relação ao direito à segurança pública. Tem a questão da apreensão das armas, que a gente não vê o mesmo empenho da Polícia Federal e do Ministério Público. É importante relativizar e não naturalizar esse tipo de ação bem intencionada do CICV, que não é uma solução estrutural e estruturante para esse problema.

CC: A chegada das UPPs nos bairros desloca os Grupos Criminosos Armados para outras localidades. Além de ser ineficiente nos locais de atuação, também acaba impactando as favelas vizinhas. Essa guerra às drogas já se mostrou incapaz. Porque se continua insistindo nesse modelo de combate ao crime?
ES: Então, a ideia da UPP de desarmar e criar uma outra convivência no território é altamente comprometida porque os territórios não estão isolados da cidade. E o que acontece lá influencia no processo de violência na cidade como um todo. A guerra às drogas não é eficiente para o enfrentamento dessa letalidade. O enfrentamento tem de se dar na questão dos homicídios e das armas. O país tem que assumir uma outra postura em relação a esse enfrentamento.

De fato, a questão maior é não termos uma política clara de enfrentamento prático. É simplório colocar a questão toda voltada para as drogas, quando na verdade deveria se buscar um enfrentamento mais sério da questão bélica. Eu acho que tem muitos interesses por trás desta questão, deste crime que a polícia escolheu enfrentar ou disse que está enfrentando.

A sociedade brasileira não entendeu que este enfrentamento não deveria se dar por lá. Principalmente, quando a mídia trata a questão colocando a guerra às drogas como necessária para esses enfrentamentos acontecerem e uma parte significativa da população referenda e acredita nessa lógica estabelecida pela guerra às drogas. Essa parte da população não tem informação sobre isso e não entende que há a violação do direito à segurança.

CC: Quem sofre com essa guerra às drogas?
ES: São as pessoas que moram em favelas, porque são as mais atingidas no momento do conflito. E estão morrendo as pessoas que nada têm a ver com essas redes ilícitas formadas dentro das comunidades. Toda semana tem operação policial na Maré em que o resultado é sempre o mesmo, muitas pessoas feridas e escolas sem aula. “Há sete meses que o Exército está na nossa comunidade e perdemos nossa privacidade. Temos portões arrombados, cadeados quebrados, projetos parados porque os jovens não podem se locomover, professores pararam com os projetos, os idosos não tem mais hora para fazer as atividades”, disse, na época, moradora da Maré, Angélica de Jesus. (Foto: Tomaz Silva/ABr)

CC: De acordo com a pesquisa, a rejeição da população da Maré está mais direcionada à polícia do que ao Exército. De qualquer forma, a atuação das forças é encarada como semelhante pela população?
ES: No início da ocupação, existia uma expectativa alta em relação à presença do Exército, que poderia ser diferente das Polícias Militar e Civil. Mas, com o tempo, foi se percebendo que a presença do Exército se aproximou, de modo negativo, à presença das polícias. O Exército não deveria cumprir a função das polícias, que têm papel diferente. Então, é uma distorção o Exército atuar da maneira que atua. É uma distorção fazer o Exército ocupar áreas urbanas, quando deveria estar construindo políticas de segurança nos estados, a Polícia Civil cumprindo o papel de investigar, a Polícia Militar atuando na prevenção e a Polícia Federal incidindo na questão da repressão às drogas.

CC: Por que as forças de segurança pública veem as favelas como uma “arena de guerra e de extermínio”, como a senhora cita na pesquisa, no processo de intervenção nesses espaços? E os moradores, por que são vistos como “inimigos” pelas forças de segurança?
ES: Com essa percepção de que há uma guerra estabelecida, a população é vista como inimiga. Existe a visão de que todos os moradores das favelas são parte dessas redes ilícitas. É nesse sentido que a gente chama a atenção para a visão equivocada de guerra dentro das favelas. Existe uma guerra estabelecida e por isso o Estado se sente autorizado a usar tanque de guerra e determinadas formas de abordagem e enfrentamento que são absolutamente violadoras e desrespeitosas de direitos a quem mora ali. Quando se estabelece uma guerra, a Polícia vai para o enfrentamento como se todo mundo que estivesse ali fizesse parte de um exército que não o da Polícia.

CC: A ocupação foi realizada mais precisamente para garantir o controle de um território em um momento no qual o país sediou a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A ocupação teve a mesma raiz de interesses das remoções em favelas do Rio de Janeiro?
ES: Eu acho que é um conjunto de procedimentos utilizados para realizar esses grandes eventos, previstos para transcorrerem da melhor forma. Então, acho que sim, existia a lógica de manter o controle das favelas. A Maré, por sua localização, que é muito estratégica, entre as principais vias de acesso ao Rio de Janeiro, Linhas Amarela e Vermelha e Avenida Brasil. Não tem como entrar no Rio sem passar pela Maré, seja de carro, avião ou a pé. À época, como não havia UPP na região, o ex-secretário de Segurança Pública do estado, José Mariano Beltrame, falou que a Maré era o maior desafio. E a resposta dada foi colocar o Exército lá.

CC: Uma resposta até para a população que vive nas áreas mais nobres do Rio de Janeiro?
ES: Exatamente. Somente entre abril e novembro de 2014, foram contabilizados 28 homicídios (Foto: Diego Jesus/ECOM)

CC: A ideia de pacificação atrelada à própria denominação das UPPs perdeu o sentido?
ES: Acho que perdeu o sentido prático, porque não feito nada no período da ocupação, no sentido de entender quais processos poderiam ser desenvolvidos. Não foi feito nenhum trabalho de inteligência para desmontar os GCAs. Teve um gasto astronômico, mais de um milhão por dia. Fico me perguntando o que isso acrescentou na construção de uma política de segurança pública. Teve um saldo muito negativo.

CC: A ocupação do Exército custou 600 milhões de reais, ao passo que, em seis anos, foram investidos 300 milhões de reais em projetos sociais no Complexo da Maré. O que isso nos mostra em relação às prioridades do governo? 
ES: Mostra a falta de compromisso com a real demanda da população, porque existe um estado que não faz investimentos de maneira estruturante e a partir de um entendimento real das demandas. Quando a gente compara o investimento feito no Exército e em programas sociais, fica muito clara a visão do que o Estado imagina ser uma necessidade das pessoas. Um investimento bélico muito forte.

CC: Projetos sociais influenciam na questão da segurança pública? Por que não investir mais em projetos sociais?
ES: Projetos sociais devem ser pensados como medidas de prevenção a determinados tipos de violência. Ter escolas, postos de saúde, áreas de lazer, investimentos em arte e cultura. Assim, você trabalha no sentido de reconhecer os direitos da população, mas também estabelecer medidas de prevenção à violência em áreas que as pessoa não tem acesso a esses direitos.

CC: Quais outros métodos de policiamento devem ser usados para que se diminua a letalidade das forças de segurança e dos conflitos que as envolvem?
ES: Primeiro, deve-se reconhecer que precisam ser desenvolvidos diagnósticos de quais são as demandas. Vemos a Polícia Federal e o Ministério Público se empenhando para combater a corrupção. Por que não há um empenho tão grande em relação às crianças e aos adolescentes que morrem diariamente? Não vemos um empenho para diminuir essa situação. Não temos como ser um país com democracia reconhecida sem isso ser enfrentado. Existem potencialidades desses territórios que não são reconhecidas. Muita coisa acontece nas favelas e não é mostrada. Só se mostra a parte negativa. 

O Estado precisa garantir segurança para todos os cidadãos e saber quem faz parte dos Grupos Criminosos Armados e quem não faz. A sociedade precisa enfrentar a questão dos homicídios. Nós somos o país que mais mata no mundo. Cerca de 10% desses homicídios acontecem somente no Rio de Janeiro. São os mais pobres que morrem. Não podemos ocultar que essas mortes acontecem como parte de uma guerra estruturalmente racista. 

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