Sociedade

Código Penal: reformar para quê?

Talvez seja o caso de mudar as organizações responsáveis pela lei, como as polícias, a defensoria, o ministério público, o Judiciário, o sistema prisional…

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Ludmila Ribeiro

Nos últimos dias é possível perceber uma série de manifestações contra a proposta de novo Código de Penal. Em todos esses debates o que está em jogo não é a necessidade ou não de um novo Código Penal, mas o escopo que essa mudança deve possuir para sedimentar um novo entendimento acerca do que deve ser recriminado pelo direito penal. Afinal, o código atual encontra-se vigente desde os anos 1940 e, por isso, está longe de refletir quais são os bens mais caros à sociedade brasileira – que são aqueles que qualquer código penal quer proteger.

Do ponto de vista técnico, as críticas concentram-se na ausência de congruência entre a parte geral (que apresenta conceitos sobre o crime e a pena) e a parte especial (que descreve os tipos penais e as penas aplicáveis); na desproporcionalidade entre os crimes previstos e as penas aplicáveis (já que a vida de um animal doméstico vale mais do que a própria vida humana); e no excesso de crimes punidos com penas de prisão, ao contrário da tendência mundial de desencarceramento (que já alcançou até os EUA, que possuem a maior população prisional do planeta).

Todas essas críticas são mais do que pertinentes, já que as incongruências são flagrantes e mesmo um leigo é capaz de percebê-las. Independentemente dos fatores que deram origem a esse cenário, o que diversas associações profissionais têm feito é requerer mais tempo para análise da proposta de novo Código Penal; revisão técnica da mesma para dissipar flagrantes incongruências; maior debate com a sociedade civil para proposição de outros tipos penais; dentre outras. A justificativa é a de que após a aplicação de tais procedimentos será possível apresentar um documento que seja tecnicamente mais viável do que o atual.

Contudo, do ponto de vista substantivo, o que parece estar em jogo não é apenas a questão de a proposta de novo Código Penal ter sido produzida de maneira fragmentada, por grupos que não compartilham os mesmos interesses, resultando em uma espécie de colcha de retalhos, cuja leitura deixa a impressão de que é mais importante proteger os animais do que os próprios seres humanos. O que parece estar em questão é a ausência de consenso em torno do que se pretende alcançar com tal legislação. A cada grupo que se forma para exame da proposta, mais tipos penais são elaborados e as penas aplicáveis estabelecidas são ainda maiores, prevendo um encarceramento ainda mais longo. É como se a criação de mais tipos penais, com penas mais severas fosse capaz de garantir a tão sonhada segurança.

Pesquisas recentes confirmam esse argumento ao demonstrarem que propostas de alteração de legislações de natureza penal e processual penal, especialmente as que resultam em mais crimes, penas mais longas ou maior rapidez na punição (respectivamente) não apenas têm mais chances de serem aprovadas, como sempre logram êxito quando algum crime “que abala a opinião pública” acontece. O caso Isabella Nardoni, por exemplo, viabilizou a reforma do Código de Processo Penal, que além de estabelecer mais claramente quais eram os prazos processuais aplicáveis; extinguiu o protesto por novo júri, que era o recurso necessariamente cabível caso a pena aplicada ao infrator fosse igual ou superior a 20 anos de reclusão.

Assim, se o resultado a ser produzido com o novo Código Penal é, de fato, menos crimes, mais do que uma revisão detalhada do ponto de vista técnico, que garanta a congruência entre os dispositivos, é preciso uma maior congruência entre os dispositivos legais e a realidade do sistema de justiça criminal brasileiro. Não adianta termos tipificações criminais mais complexas e abrangentes, que prevêem penas de reclusão mais longas, se ainda temos uma das maiores taxas de homicídio das Américas, se demoramos quase cinco anos para processar um suspeito pela prática de homicídio doloso e se a taxa de reincidência do sistema prisional ainda é de, aproximadamente, 80%.

A questão não parece ser a capacidade em produzirmos uma legislação penal mais tecnicamente congruente, mas em conceber uma legislação cuja operacionalização seja capaz de produzir os efeitos esperados: menos crime, mais segurança. E, nesse caso, talvez nem seja o caso de reformar o Código Penal, mas as organizações responsáveis por sua operacionalização, como as polícias, a defensoria, o ministério público, o Judiciário, o sistema prisional…

Portanto, o debate sobre qual deve ser o conteúdo do Código Penal deve passar, necessariamente, por uma revisão do que queremos com essa nova legislação. Sem isso, muito pouco irá se avançar em termos de segurança pública.

 

Ludmila Ribeiro, professora do Departamento de Sociologia e Antropologia e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, é associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Ludmila Ribeiro

Nos últimos dias é possível perceber uma série de manifestações contra a proposta de novo Código de Penal. Em todos esses debates o que está em jogo não é a necessidade ou não de um novo Código Penal, mas o escopo que essa mudança deve possuir para sedimentar um novo entendimento acerca do que deve ser recriminado pelo direito penal. Afinal, o código atual encontra-se vigente desde os anos 1940 e, por isso, está longe de refletir quais são os bens mais caros à sociedade brasileira – que são aqueles que qualquer código penal quer proteger.

Do ponto de vista técnico, as críticas concentram-se na ausência de congruência entre a parte geral (que apresenta conceitos sobre o crime e a pena) e a parte especial (que descreve os tipos penais e as penas aplicáveis); na desproporcionalidade entre os crimes previstos e as penas aplicáveis (já que a vida de um animal doméstico vale mais do que a própria vida humana); e no excesso de crimes punidos com penas de prisão, ao contrário da tendência mundial de desencarceramento (que já alcançou até os EUA, que possuem a maior população prisional do planeta).

Todas essas críticas são mais do que pertinentes, já que as incongruências são flagrantes e mesmo um leigo é capaz de percebê-las. Independentemente dos fatores que deram origem a esse cenário, o que diversas associações profissionais têm feito é requerer mais tempo para análise da proposta de novo Código Penal; revisão técnica da mesma para dissipar flagrantes incongruências; maior debate com a sociedade civil para proposição de outros tipos penais; dentre outras. A justificativa é a de que após a aplicação de tais procedimentos será possível apresentar um documento que seja tecnicamente mais viável do que o atual.

Contudo, do ponto de vista substantivo, o que parece estar em jogo não é apenas a questão de a proposta de novo Código Penal ter sido produzida de maneira fragmentada, por grupos que não compartilham os mesmos interesses, resultando em uma espécie de colcha de retalhos, cuja leitura deixa a impressão de que é mais importante proteger os animais do que os próprios seres humanos. O que parece estar em questão é a ausência de consenso em torno do que se pretende alcançar com tal legislação. A cada grupo que se forma para exame da proposta, mais tipos penais são elaborados e as penas aplicáveis estabelecidas são ainda maiores, prevendo um encarceramento ainda mais longo. É como se a criação de mais tipos penais, com penas mais severas fosse capaz de garantir a tão sonhada segurança.

Pesquisas recentes confirmam esse argumento ao demonstrarem que propostas de alteração de legislações de natureza penal e processual penal, especialmente as que resultam em mais crimes, penas mais longas ou maior rapidez na punição (respectivamente) não apenas têm mais chances de serem aprovadas, como sempre logram êxito quando algum crime “que abala a opinião pública” acontece. O caso Isabella Nardoni, por exemplo, viabilizou a reforma do Código de Processo Penal, que além de estabelecer mais claramente quais eram os prazos processuais aplicáveis; extinguiu o protesto por novo júri, que era o recurso necessariamente cabível caso a pena aplicada ao infrator fosse igual ou superior a 20 anos de reclusão.

Assim, se o resultado a ser produzido com o novo Código Penal é, de fato, menos crimes, mais do que uma revisão detalhada do ponto de vista técnico, que garanta a congruência entre os dispositivos, é preciso uma maior congruência entre os dispositivos legais e a realidade do sistema de justiça criminal brasileiro. Não adianta termos tipificações criminais mais complexas e abrangentes, que prevêem penas de reclusão mais longas, se ainda temos uma das maiores taxas de homicídio das Américas, se demoramos quase cinco anos para processar um suspeito pela prática de homicídio doloso e se a taxa de reincidência do sistema prisional ainda é de, aproximadamente, 80%.

A questão não parece ser a capacidade em produzirmos uma legislação penal mais tecnicamente congruente, mas em conceber uma legislação cuja operacionalização seja capaz de produzir os efeitos esperados: menos crime, mais segurança. E, nesse caso, talvez nem seja o caso de reformar o Código Penal, mas as organizações responsáveis por sua operacionalização, como as polícias, a defensoria, o ministério público, o Judiciário, o sistema prisional…

Portanto, o debate sobre qual deve ser o conteúdo do Código Penal deve passar, necessariamente, por uma revisão do que queremos com essa nova legislação. Sem isso, muito pouco irá se avançar em termos de segurança pública.

 

Ludmila Ribeiro, professora do Departamento de Sociologia e Antropologia e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, é associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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