Sociedade

Dias Toffoli e o racismo institucional

O voto do ministro do STF no debate sobre a regularização das terras quilombolas é perigosamente contraditório

Dias Toffoli. O que explica sua argumentação?
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Em 9 de novembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) José Antonio Dias Toffoli proferiu seu voto na ação do DEM que busca derrubar a regularização das terras quilombolas. Foi um parecer contraditório e que, na leitura da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), configura racismo institucional. 

Em julgamento no STF está a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239/04. O alvo dela é o Decreto 4887/03, assinado pelo ex-presidente Lula e que trata dos procedimentos de regularização dos territórios quilombolas. Toffoli não é estranho ao tema. Foi subsecretário de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, que elaborou o decreto em questão, e advogado-geral da União, entidade que também lidou de perto com o tema. Por isso, seu voto chama a atenção.

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Na argumentação, Toffoli destacou que “não há dúvida de que o preceito constitucional motivou-se na necessidade de se reparar uma dívida histórica decorrente da injustiça secularmente praticada contra os negros desde o período escravocrata brasileiro”. Trata-se, segundo o ministro, de “reparação concretizada no reconhecimento dos direitos de descendentes das comunidades dos antigos escravos à propriedade das terras por eles historicamente ocupadas”.

Essa fala indica que Toffoli reconhece que a Constituição de 1988 procurou reparar danos causados aos negros – danos esses longe de serem reparados apenas com a possibilidade lenta da regularização dos territórios quilombolas, por se tratar de um país com cerca de 50% de sua população (pretos e pardo-negros). Lembremos que os estragos incluem milhares de mortes, torturas, massacres, séculos de escravidão e abandono pós-abolição, que significaram a continuidade da exclusão e a violação dos direitos dos negros no Brasil. 

Na continuidade de seu voto, Dias Toffoli diz que “não se deve esquecer que, após a abolição dos escravos, em 14 de dezembro de 1890, no intuito de inviabilizar eventuais pleitos indenizatórios dos fazendeiros, Rui Barbosa, quando ministro da Fazenda do Governo Deodoro da Fonseca, determinou a destruição de todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos aos elementos servis, matrículas dos escravos, dos ingênuos, filhos livres das mulheres escravas e libertos sexagenários”.

Ou seja, o ministro reconhece a impossibilidade de os quilombolas provarem a ocupação da terra nos padrões jurídicos aceitos

Ocorre que, mais à frente em seu voto, Dias Toffoli faz uma exigência para a regularização das terras que, a meu ver, é extremamente contraditória. Diz o ministro que “somente devem ser titularizadas as áreas que estavam ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, inclusive as efetivamente utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural, na data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), salvo comprovação, por todos os meios de prova juridicamente admitidos, da suspensão ou perda da posse em decorrência de atos ilícitos praticados por terceiros”. 

Ou seja, o ministro reconhece, ao mesmo tempo, que os quilombolas estão devidamente qualificados para a regularização das terras, que estão sem as condições de provar a posse delas (visto que parte das provas existentes foram queimadas criminosamente pelo Estado brasileiro), e mesmo assim exige as “provas juridicamente admitidas”, impondo a chamada tese do “marco temporal”, segundo a qual os direitos previstos na Constituição só valem a partir da situação existente na promulgação da Carta. 

O ministro Dias Toffoli estaria praticando ato de racismo contra os quilombolas ao reconhecer que eles são portadores de direitos assegurados pela Constituição e pela Convenção 169 da OIT e que as provas que poderiam ter foram queimadas e mesmo assim insistir em marco temporal?

E os danos de mais de três séculos de escravidão que não foram resolvidos com a falsa abolição, como vão ser calculados? Qual é “marco temporal” para os escravocratas e seus descendentes começarem a pagar os danos causados aos negros e aos indígenas no Brasil?

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Para os índios, seria a data de chegada dos primeiros portugueses ao Brasil. É dessa data que se deve contar a dívida daqueles que invadiram terras indígenas, exterminaram e expulsaram povos de seus territórios. E, para os negros, a data a ser considerada é a do embarque dos primeiros negros em navios negreiros para ser escravizados o Brasil.

O certo é que a Conaq, em assembleia com os quilombolas, após o pedido de vistas pelo ministro Edson Fachin neste processo, decidiu que vai continuar lutando pela constitucionalidade do Decreto 4887/03 e contra o marco temporal, além de continuar denunciando nacional e internacionalmente o ato do ministro Dias Tofili como “prática de racismo institucional”. Por nenhum passo atrás, e nenhum quilombo a menos!

*Uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas do Brasil (Conaq), Givânia Maria da Silva é mestre em Políticas Públicas e Gestão da Educação e doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília. Ela coordenou a política nacional de regularização dos territórios quilombolas do Incra entre 2008-2014 e foi secretária nacional de políticas para povos e comunidades tradicionais do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (2015-2016).

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