Sociedade

“Lá não tínhamos comida todos os dias”

Centenas de indígenas Warao deixam o caos venezuelano para trás e buscam refúgio em Manaus. Muitos estão em situação de extrema vulnerabilidade

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De Manaus

Entre duas movimentadas avenidas de Manaus, crianças brincam entre barracas azuis e abrigos feitos de lona amarela em um pequeno terreno de terra batida, debaixo de um viaduto, totalmente alheias aos carros que passam em alta velocidade. Desde março, o local, ao lado da rodoviária da cidade, tornou-se o lar de um grupo de indígenas Warao vindos da Venezuela, que começaram a migrar para a cidade refugiados da crise econômica que assola o país.

No último dia 16, o governo do Amazonas apresentou um Plano Emergencial de Ajuda Humanitária que inclui a disponibilização de um abrigo e de apoio financeiro às famílias em situação de risco. O plano chega apenas alguns dias depois que o Ministério Público Federal (MPF) expediu uma recomendação à Casa Civil da Presidência da República, ao estado do Amazonas, ao município de Manaus e aos ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e do Desenvolvimento Social e Agrário, com medidas a serem adotadas em um prazo de dez dias para evitar um drama humanitário ainda maior.  

Os primeiros indígenas Warao começaram a chegar a Manaus em dezembro de 2016. De lá para cá, o número saltou de 36 para 387 indivíduos, segundo informações da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (Semmasdh), e não para de crescer. A previsão da Arquidiocese de Manaus é de que ao menos 250 novos indígenas cheguem à cidade nas próximas duas semanas. 

O professor indígena Anibal Perez faz parte do grupo acampado no terreno ao lado da rodoviária. Nativo da comunidade de Mariusa, no Parque Nacional do Delta do Orinoco, Perez conta que migrou para Manaus para fugir da fome. “Vivia em uma comunidade pesqueira que fica de frente para a ilha de Trinidad & Tobago. Pescamos e vendemos pescado nas cidades e com o dinheiro comprávamos os outros alimentos. Mas agora a situação ficou muito difícil na Venezuela. Ninguém mais tem dinheiro”. 

A situação piorou quando sua família perdeu tudo em um incêndio. “Perdi roupas, documentos e a inflação está muito alta. Coisas como sapato e roupas estão muito caras, nunca teria dinheiro para comprar um sapato”, revela.

Antes de chegar à Manaus, muitos Warao passaram por casas de acolhimento em Boa Vista. Mas com o inchaço migratório na capital de Roraima, e o endurecimento da política migratória da fronteira, alguns grupos passaram a buscar destinos e caminhos alternativos.

“Tivemos dificuldades quando chegamos em Pacaraima (RR), pois a Polícia Federal estava impedindo a entrada, dizia que havia muito Warao em Boa Vista e as autoridades não nos permitiam entrar legalmente, então tivemos que ficar numa área verde de floresta e de lá fomos caminhando e vendendo artesanato para comprar uma passagem de ônibus para Manaus”, relata.

O cacique Fernando Moralez seguiu o mesmo caminho, passando por Boa Vista antes de alcançar a capital amazonense. Com ele vieram 40 indígenas, sendo 25 crianças. “Aqui está melhor, comemos frango, café com leite. Lá não tínhamos comida todos os dias. Pretendo voltar, mas só para buscar o resto da minha família”, diz.

De acordo com a Semmasdh, além dos indígenas acampados ao lado da rodoviária existem também grupos alojados em cortiços no centro e na zona leste de Manaus.

Drama humanitário

“Os venezuelanos não indígenas têm chegado em Manaus desde de 2014, nós já atendemos mais de 1.000 venezuelanos na Pastoral dos Migrantes. Eles chegam pedindo ajuda para documentação, curso de português, moradia, trabalho, alimentação, e nós temos apoiado em tudo que podemos. Agora a questão dos indígenas Warao é uma demanda diferente”, explica a freira Valdiza Carvalho, da Pastoral do Migrante do Amazonas.

Para obter dinheiro para comprar alimentos e, em alguns casos, pagar o aluguel nos cortiços, os homens vendem artesanato e as mulheres e crianças passaram a pedir dinheiro em vários pontos da cidade, em situação de extrema vulnerabilidade. “O que vemos lá é uma situação de calamidade, principalmente a saúde. Hoje mesmo está sendo feita outra ação de saúde pela Caritas, porque ontem faleceu mais uma criança”, afirma Valdiza.

“Eles começaram a chegar e nós sempre cobramos do poder público um abrigamento. Mas nada foi feito. Depois o grupo aumentou, vários apareceram no centro na rua Quintino Bocaiuva”, diz. “Nos juntamos à Caritas e foram feitas várias ações de saúde, contagem, doações de fraldas, alimentos, botijão, fogão. Mas a pastoral não tem como assumir essa demanda”, lamenta.

A Semmasdh tem acompanhado a situação diariamente na Rodoviária e a Secretaria Municipal de Saúde tem prestado apoio a Caritas no atendimento médico e vacinação de crianças e idosos. A Semmasdh informou por meio de nota que o governo federal sinalizou que seriam repassados 20 mil reais para cada grupo de 50 indígenas venezuelanos que estivessem na cidade. Ainda não há, entretanto, data prevista para o repasse destes recursos.

Em 4 de maio, a prefeitura de Manaus publicou o decreto nº 3.689, declarando situação de emergência social pelos próximos 90 dias, prorrogáveis por mais 30, devido o intenso processo de migração dos indígenas Warao.

Hoje, além da necessidade de abrigo dessa população, uma das principais preocupações do poder público municipal é a “possibilidade de disseminação de doenças oportunistas e de fácil transmissão, que podem causar sérios riscos à saúde dos imigrantes e dos manauaras”, afirmou a secretaria em nota.

No dia 16, quase seis meses depois do início da onda migratória, o governo do Amazonas anunciou um plano de ação para lidar com a questão. Os migrantes acampados nas proximidades da Rodoviária de Manaus serão abrigados provisoriamente no prédio do antigo programa Jovem Cidadão, no bairro Coroado, zona leste, e a Secretaria Estadual de Assistência Social (Seas) irá repassar à Prefeitura a quantia de 300 mil reais, por meio do Fundo Estadual de Assistência Social, para o custeio das despesas das famílias no local até uma solução definitiva.

“Nesse momento, de forma emergencial, nós precisamos tirá-los dessa situação o mais rápido possível porque é uma ação humanitária. O povo brasileiro é um povo solidário e o estado estende a sua mão, juntamente com a prefeitura, para auxiliá-los nesse momento tão difícil por que passam nossos irmãos venezuelanos. Nós pedimos à população, às igrejas e entidades de classe que continuem ajudando”, declarou o governador em exercício, David Almeida.

Alguns dias antes 11, o Procuradoria da República no Amazonas emitiu uma recomendação, solicitando a ação imediata do poder público. Com o plano, parte das recomendações serão cumpridas. Mas prefeitura, estado e governo federal ainda devem implementar, em um prazo de 20 dias, uma política sólida de imigração no Estado.

À Polícia Federal, o MPF recomendou que a instituição monitore a entrada de imigrantes venezuelanos no País, em especial de crianças, mulheres e gestantes, fiscalizando e reprimindo a ação de autores de eventuais abusos sexuais, tráfico de órgãos e tráfico de pessoas, e o fornecimento da documentação necessária para acesso aos serviços essenciais de cidadania a todos os imigrantes em situação de vulnerabilidade.

O MPF fez recomendações, ainda, à Polícia Militar, devido aos relatos de abordagens violentas. As abordagens, agora, só devem ser feitas com acompanhamento de agentes da Fundação Nacional do Índio (Funai).  Casos de incêndios criminosos e violências relacionadas à xenofobia também foram coletados pelo MPF. 

Porta de entrada para o Brasil

Esta não é a primeira vez que Manaus e Boa Vista enfrentam uma onda migratória sem apoio do governo federal. Em 2010, centenas de haitianos migraram para o Brasil, fugindo da calamidade instaurada no país após a passagem de um furacão. Sem estruturas adequadas para receber este fluxo, o atendimento inicial foi feito pela igreja e por grupos particulares organizados.

“Eu acredito que o Brasil tem condição sim de receber essas pessoas, falta vontade política do poder público de fazer alguma coisa”, afirma Valdiza Carvalho.

Desde 2015, a Venezuela vem passando por uma grave crise política e econômica, que se intensificou a partir de 2016, com o colapso total do sistema de saúde, de abastecimento de alimentos e energia e o aumento expressivo da inflação, que reduziu drasticamente o poder de compra da população. Desde o início deste ano o governo de Nicolás Maduro vem enfrentando manifestações populares de forma violenta.

“Nós apoiamos o presidente atual, pois o presidente Chávez disse que devíamos apoiá-lo. Mas Maduro abandonou o projeto de Chávez e se apropriou de muitas empresas e os empresários tiveram que se mudar para outros países, por isso a vida na Venezuela ficou tão dura”, relata Anibal Perez.

“No Brasil eu tenho que agradecer ao governo que nos abriu a porta, sentimos este calor humano, a solidariedade, muitos empresários, pessoas da igreja trazem doações, pães, comida pronta, crua, roupas, tudo. Gostaria de reconstruir minha vida aqui e voltar a ser útil para minha comunidade”, completa.

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