Sociedade

Na repressão de Doria contra a arte de rua, alvo é a juventude periférica

Ao tentar cindir grafite e pichação, prefeito tucano avança contra a origem dessas manifestações

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Na Avenida 23 de Maio, sobre a tinta cinza ainda fresca da última ação do projeto Cidade Linda, iniciativa do prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), um pichador escreveu “respeito”. Na sequência, pintou a palavra “Doria” doze vezes, uma ao lado da outra. Poucas horas depois, na terça-feira 24, as intervenções foram apagadas.

Também sumiram rapidamente a gigantesca inscrição “Chora, Doria”, nos muros do estádio do Pacaembu, e um “Doria, pixo é arte”, escrito próximo à sede da Prefeitura. Em tinta sobre tinta, a “guerra do spray” toma conta de São Paulo.

No episódio mais recente da disputa, o prefeito anunciou na quinta-feira 26 a criação de um programa de grafite de rua para promover grafiteiros e muralistas. De três em três meses, a Prefeitura vai “liberar” espaços na capital para este tipo de arte. Trata-se de um remendo em uma ação que gerou insatisfação e polêmica, mas que não esconde a ânsia do tucano de controlar o que considera indesejável.

Desde o início da “guerra”, Doria buscou dividir em duas partes a arte de rua. De um lado, colocou o que vê como aceitável, o grafite. Do outro, o condenável, as pichações. Para essa, prometeu “não dar moleza”, o “rigor da lei” e “tolerância zero”. De quebra, mobilizou parte do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), que investiga organizações criminosas, para buscar esses “agressores”.

A busca pela divisão tende a ser malfadada. Eleilson Leite, coordenador de cultura da ONG Ação Educativa e autor da obra Graffiti em SP: tendências contemporâneas, lembra que grafite e pichação caminham juntos. “Muitos dos grafiteiros que hoje são idolatrados, que estão nos painéis e galerias, são os antigos pichadores que sofriam perseguições”, afirma. 

É o caso de Eduardo Kobra, autor, entre outros, do painel com o rosto do arquiteto Oscar Niemeyer na Avenida Paulista, famosa via de São Paulo. No início de janeiro, Doria chegou a anunciá-lo como coordenador de um programa contra a pichação. Horas depois, o artista negou qualquer participação da gestão do PSDB. 

Hoje, Kobra expõe suas obras também no exterior, e se tornou um nome famoso, mas começou sua carreira como pichador, no Campo Limpo, zona sul de São Paulo, e foi preso mais de dez vezes. Em recente entrevista ao portal G1, ele se negou a separar grafite e pichação. “Não me colocaria numa posição de julgar o que está nas ruas”, afirmou. “Não vejo o meu trabalho superior ao de ninguém. Todo mundo está nas ruas, batalhando pelo seu espaço”, disse.

A busca por dividir a arte de rua tem também um recorte racial. É o que afirma Douglas Belchior, ativista do movimento negro e blogueiro de CartaCapital. “Doria está afrontando marcas nossas, porque o grafite está na gênese do hip hop e do movimento negro”, afirma. “Doria está indo no cerne da questão racial em todas as suas ações como prefeito até agora”.

Essa origem questionadora do grafite ajuda a explicar por que a tentativa de cooptar a arte também tende a naufragar. “O grafite sequer é o que você vê no muro. Ele existe antes do ejetar da tinta. O grafite é uma ideia, e ela funciona”, afirma Pagu, produtor de arte de rua de São Paulo. “Pergunte ao chefe de segurança do Estado como é frustrante lidar com elementos surpresa, com uma manifestação de rua sem regras, sem hora marcada, sem comando, sem articulação”, diz. 

Para Pagu, ainda que muitos grafiteiros tenham conseguido reconhecimento, o movimento mantém seu viés rebelde. “O grafite não é apenas ilegal, ele não quer ser legal. Querer organizar o grafite é grotesco”, diz Pagu.

Binho Ribeiro, 45 anos, grafita desde os 14. Para ele, de pouco adianta reprimir os pichadores e os grafiteiros sem perceber o caráter insurgente da arte de rua e suas motivações. “Como você vai abrir diálogo com quem está revoltado?”, questiona. “Fica difícil resgatar um jovem gerando tanto ódio ao poder público. Precisa de inclusão, não de marginalização”.

Não há muitas pesquisas sobre quem são os pichadores, mas Eleilson Leite, da Ação Educativa, lembra que, ainda que essas intervenções não sejam feitas majoritariamente por jovens, contam com a admiração de um largo segmento da juventude. “Atacar o grafite, o picho, é uma forma de atacar a juventude, principalmente a periférica”, afirma. 

O artista plástico Rui Amaral, 54 anos, é um dos precursores do grafite em São Paulo. Ele já foi preso diversas vezes e, inclusive, processado criminalmente pela prefeitura durante a época de Jânio Quadros, na redemocratização. Anos mais tarde, o artista iniciou projetos voluntários voltados para a juventude periférica.

Foi quando conheceu dois garotos que sofreram com a violência policial mais intensamente do que ele próprio. “Eles estavam em cima do muro, o policial chegou com uma abordagem agressiva, apontando a arma. Um caiu e fraturou a perna, ficou manco, o outro morreu. Eu nunca vi um período tão difícil como agora”.

De Jânio a Doria, Amaral enfrentou ou trabalhou junto com todas as administrações municipais de São Paulo, e diz perceber que sempre há uma diferença de mentalidade nas trocas de governo. “A gente paga cestas básicas, fazemos trabalho comunitário se formos pegos. Tudo na conversa. Não precisa bater no cara e pintar ele inteiro de dourado”, afirma.

Pela Lei de Crimes Ambientais, pichar patrimônio público ou privado é uma infração leve, com multa ou detenção de 3 a 12 meses. Quando a repressão cresce, os pichadores ganham mais ímpeto, porque quanto mais quanto mais alto, proibido ou difícil o local onde vai pichar, melhor. “O picho não precisa ser valorizado como arte, porque não é o caso, mas tem que ser reconhecido como forma de expressão, porque picho é estética do caos, e o caos é a cidade urbana”, afirma Eleilson Leite.

“Eu entendo grafite e pichação como uma coisa só”, explica Rui Amaral. “O que importa é a atitude, o que te leva a fazer isso, não o que você escreve. A gente quer que as pessoas entendam a importância da arte urbana livre para a luta por direitos. E um deles é o direito de se expressar.

No prefácio do livro de Eleilson Leite, o rapper Criolo sintetiza a relação entre o grafite e a cidade:

“O suporte do graffiti é a mente / A cidade só recebe a visita / Pois quando não a sinto minha / Me sinto assim visita não desejada / Assim como um graffiti e um pixo que brotam na parede / De quem ama uma vida cinzenta. / Arranquem suas mãos e destruam as cores! / Prendam seus corpos em gavetas falantes sem expressão / E mesmo assim / O desenho e o porquê do risco continuará latente / Na mente deste que vai à rua sem medo”.

*Colaborou Felipe Campos Mello

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