O que a desindustrialização tem a ver com a violência na favela do Jacarezinho

A chacina na favela com maior população preta do Rio não é apenas reflexo da violência e do racismo, aponta o historiador Raul Milliet

Manifestação contra o massacre em Jacarezinho. Foto: MAURO PIMENTEL / AFP

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A chacina do Jacarezinho não é apenas um reflexo da violência e do racismo policial aplicado em sua forma mais brutal, mas também de uma crescente desestruturação econômica nos arredores da comunidade. Quem aponta para o problema é o historiador Raul Milliet, que durante a década de 70 e 80 capitaneou iniciativas sócio pedagógicas levadas até os moradores do morro na Zona Norte do Rio, como cursos supletivos e iniciativas de clínica médica, pediatria e ginecologia – projetos da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), em que militou durante os anos de ditadura.

“Eu conheço o Jacarezinho como a palma da minha mão desde aquela época e tenho acompanhado uma crescente desestabilização nas indústrias que formavam o parque industrial da região, o que sem dúvida se refletiu numa falta de oportunidades generalizada para os moradores”, afirma ele.

O terreno em que hoje está o Jacarezinho é parte de uma fazenda pertencente à família de Getúlio Vargas e foi doado aos trabalhadores que construíram as primeiras casas do conjunto, no alto do morro, já na década de 1920, lembra Milliet. O avanço industrial promovido naqueles anos pelo governo Vargas fez indústrias se instalarem nos arredores da comunidade (majoritariamente preta, segundo dados do IBGE) desde os primeiros anos de sua formação, o que continuou a acontecer na segunda metade do século XX com empresas que formavam um dos maiores parques industriais da cidade.

Duas grandes áreas em sopés opostos do Jacarezinho, aponta Milliet, pertencem a empresas com histórico de empregar um grande volume de moradores da comunidade: a General Electric e a Cisper. A partir dos anos 2010, contudo, ambas perderam influência.

De um lado, a GE foi fechada em 2008. E a antiga Cisper perdeu boa parte das vagas de emprego após algumas reestruturações nos anos seguintes. Nos cálculos do historiador, cerca de 1.500 empregos diretos ocupados por moradores do Jacarezinho deixaram de existir a partir dessas duas situações, fora os postos indiretos também atingidos. Hoje, o terreno da General Electric está não só abandonado, como guarda toneladas de materiais tóxicos que ameaçam o solo e a água, restos da produção de lâmpadas iniciada em 1928 – a desapropriação da área no bairro de Maria da Graça, ao lado da comunidade, é cogitada pela prefeitura há anos, sem sair do papel.


“Havia certa paz, principalmente por conta da empregabilidade que essas empresas ofereciam”, diz Milliet. Mas a perspectiva toyotista do neoliberalismo fez com que essas indústrias se retirassem para outros mercados”. Segundo ele, a movimentação veio acompanhada de um visível aumento no consumo de crack nos arredores da comunidade, de forma que “uma pequena cracolândia se formou em uma das bases da favela”. Na esteira da falta de oportunidades de trabalho, a influência do tráfico aumentou nos anos seguintes à sombra do Comando Vermelho, que comanda a área atualmente.

“Essa operação desastrosa é o resultado de um processo estrutural da qual a favela é vítima, o que inclui tanto a debandada de empregos e a falta geral de oportunidades, quanto a criminosa política de guerra às drogas empreendida pela polícia do Rio, que não resolve nada e só atinge os mais vulneráveis”, conclui.

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