Sociedade

Fabiane Maria de Jesus e o nosso retrato falado

Quando o boato gerado a partir de um retrato falado chegou à boca das pessoas de bem, a vítima do linchamento já estava condenada à morte. Por Matheus Pichonelli

Designers gráficos no laboratório da polícia civil de São Paulo
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Quando fizerem meu retrato falado, não se esqueçam de dizer que um dia fui muitos.

Coloquem lá: era jovem, olheiras consideráveis, franja à testa, nem moreno nem loiro, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro. Usava sempre o mesmo tênis. Usava-os até esgarçar. A muito custo, comprava outro, do mesmo modelo, da mesma cor. Amarrava os cadarços para dentro do tênis para não tropeçar e ainda assim tropeçava. As calças eram sempre maiores que a numeração. As barras se arrastavam pelas ruas e se arrebentavam na ponta. Levava um escapulário no pescoço, presente da avó que um dia disse que, para andar nessa cidade de loucos, precisava de proteção. Não o tirava nem para tomar banho nem para se deitar, sozinho ou acompanhado.

Aos domingos, demorava-se na cama. Fazia planos para o dia que quase nunca se realizavam, como caminhar, andar de bicicleta ou começar a ler Em Busca do Tempo Perdido.

Aos 31, achava que tudo na vida eram releituras. Que as novas pessoas eram versões de outras conhecidas na infância ou na adolescência. E que, não importava o que lesse, visse ou ouvisse, nada causaria tanto impacto como o que leu, viu e ouviu antes dos 20, quando tudo o que levava no bolso eram sonhos e o cartão para o ônibus.

Quando fizerem meu retrato falado, digam ao mundo que me aproximei e me afastei de muita gente, mas que nunca me esqueci de nenhuma delas. Contem que gostava de música, e que lamentava não saber tocar instrumento algum. Contem que cada música tinha uma lembrança. Umas eram alegres, outras tristes, mas davam sempre na mesma. As alegres deixavam de ser alegres quando viravam saudade. As tristes deixavam de ser tristes quando viravam distância.

Quando fizerem meu retrato falado, expliquem os motivos das olheiras. Falem das noites maldormidas e do tempo na frente do computador. Não se esqueçam de citar a dependência do café para acordar e do álcool para dormir. Relatem os porres e as euforias a cada grito de gol.

Falem dos amigos. Dos familiares. Das festas de Natal na casa do avô que já morreu. Das visitas recebidas e das viagens. Dos encontros nas ruas e dos reencontros que ficaram para qualquer dia desses e que jamais aconteceram. Não esqueçam de dizer o quanto lamentei as visitas que jamais vieram.

Quando fizerem meu retrato falado, digam que, quando criança, machuquei o tornozelo jogando bola e que soube naquele dia o que era a dor. Que levei semanas para voltar a pisar no chão. E que, não importa o que diziam os poetas, a dor na alma nunca dói tanto quanto o encontro súbito dos dedos com o pé da cama, que dirá uma paulada, um golpe com barra de ferro ou a escarrada da legítima defesa coletiva. Para a dor da alma existem as músicas e os remédios, mas para a dor do corpo não existem confortos nem palavras.

Na descrição do meu retrato, não se esqueçam de dizer que ao pé do retrato havia um tornozelo machucado que não doía mais. Mas não só. Escrevam e desenhem que o meliante era portador de costelas, de vértebras, clavícula e fêmur. E que os ossos doíam quando se quebravam. Digam que carregava a epiderme pálida pela falta de sol, e que dentro dela carregava órgãos vitais, entre os quais um coração em estado bruto, do tamanho de um pulso, estufado e ensanguentado. E veias. E artérias. Deixem o adendo: este corpo pensava e sentia, ouvia e falava, transformava e era transformado. Era adepto de magia negra, azul, amarela e do Carnaval. E tinha planos para as festas de fim de ano. E que, quando saía de casa para comprar pão, tinha um filho que o esperava vivo.

É bom que seja dito: esse conjunto de carne e osso pertencia a um homem. Um homem retratado, mas um homem. Era Fabiane. Era de Maria. E era de Jesus.

Mas, quando fizerem a descrição, em detalhes miúdos para evitar a confusão com inocentes, coloquem os verbos todos no passado: quando o retrato chegar aos postes e às bocas das pessoas de bem, este homem estará morto. Ainda que sobreviva.

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