Sociedade

“Temos traços de colonialismo dos quais não nos libertamos”

Subprocuradora da República critica “setores hegemônicos” que não se conformam com direitos indígenas, quilombolas e reservas ambientais

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O ano de 2015 foi marcado por uma série de ataques aos direitos indígenas. Na Câmara, setores conservadores, liderados pela bancada ruralista, aprovaram projetos polêmicos, como a PEC 215, que retira do Executivo a exclusividade de demarcar terras indígenas, e uma CPI para investigar a atuação da Funai e do Incra. O governo federal, por sua vez, paralisou as demarcações de terras indígenas e, como consequência, assistiu ao acirramento de conflitos entre índios e fazendeiros, no Mato Grosso do Sul. Enquanto isso, no Judiciário se fortalece o controverso conceito jurídico do “marco temporal”, que barra o reconhecimento de terras indígenas não ocupadas por índios até a promulgação da Constituição.

Para a subprocuradora-geral da República, Déborah Duprat, este cenário seria ainda mais sombrio se não fosse a organização dos povos indígenas. Para Duprat, o País vive uma situação que é reflexo dos “traços de colonialismo” ainda presentes. Responsável por coordenar a 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF), responsável por questões envolvendo populações indígenas e comunidades tradicionais, Duprat critica o “imobilismo” do governo federal na demarcação de terras, crê que a PEC 215 não tem chances de se tornar lei e propõe uma nova interpretação do “marco temporal” pelo Supremo.  

CartaCapital: Desde setembro de 2014, o Supremo Tribunal Federal cancelou a demarcação de três terras indígenas alegando que elas não eram ocupadas quando da promulgação da Constituição. Qual é o entendimento da Procuradoria a respeito deste conceito de “marco temporal”?

Déborah Duprat: O problema do “marco temporal”, na verdade, antecede o julgamento da Raposa Terra do Sol e vem sendo construído no Supremo desde o final da década de 90. O marco temporal define que as demarcações de terras indígenas só poderão ocorrer em áreas ocupadas por índios antes da promulgação da Constituição, em 1988. Isto, em si, não é um problema se o conceito de ocupação ou de resistência à invasão for considerado na perspectiva dos povos indígenas. O que não pode existir é um conceito hegemônico de posse e resistência. Se olharmos em uma perspectiva plural, em quase todas as terras há uma ocupação, em 1988, e quando não há uma ocupação, há uma resistência, ainda que não nos moldes formais de uma ação possessória.

CC: Mesmo nas terras em que os índios foram expulsos pela ditadura e posteriormente entregues a posseiros?

DD: Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, os indígenas nunca saíram das terras. Eles não têm a posse do direito civil, mas eles transitam, fazem coleta e, às vezes, se empregam nas fazendas. E isso é uma perspectiva de posse tradicional também. Ou seja, o marco temporal pode ser um problema? Sim. Mas pode ser minimizado se esse aspecto plural de posse e resistência for levado em conta.

CC: A senhora fala sobre o marco temporal como algo decidido, que já é regra…

DD: Não, eu digo que é algo que vem sendo construído pelo Supremo há muito tempo. É algo difícil de voltar atrás. Para mim, é mais fácil pensarmos em como enfrentá-lo adequadamente.

CC: Os processos de demarcação são considerados em fase terminal, por alguns antropólogos, porque grande parte das terras indígenas brasileiras já foram demarcadas, restando demarcar de 25 a 30% do total, que são justamente onde ocorre conflito. Como avançar neste processo uma vez que os processos de demarcação estão judicializados e a União se diz atada?

DD: Isso é uma meia verdade, pois há também o imobilismo do Executivo. Há terras que poderiam ter seu processo iniciado ou sequenciado, mas, de antemão, o governo se retrai com medo de uma decisão judicial. Deste jeito realmente não vamos avançar para lugar nenhum. É muito importante que o Judiciário compreenda a questão indígena. Falta ao Judiciário reflexão, até mesmo teórica, sobre o assunto. Muito mais do que má-fé, existe um desconhecimento.

CC: Há um despreparo no Judiciário sobre a questão indígena?

DD: Eu acho que sim. Há muito pouca reflexão e interlocução com movimentos indígenas e com áreas do conhecimento como a antropologia e a história, por exemplo.

CC: Grande parte destas terras, que estão em conflito, são terras públicas alocadas a posseiros desde a década de 20 e, principalmente, durante o período militar. O judiciário deveria fomentar acordos entre posseiros e índios?

DD: Eu não sou favorável a acordos. A Constituição fala da terra necessária para a existência física e cultural de um grupo. Isso é um direito fundamental, de carácter inalienável e imprescritível. Ou seja, não se pode transacionar com um direito deste tipo. As acomodações que precisam ser feitas são no sentido de determinar pagamentos e indenizações, mas não no sentido de subtrair direitos.

CC: As indenizações seriam apenas sobre as benfeitorias do terreno?

DD: E sobre a terra também. O Ministério Público Federal defende isso há algum tempo e isso é possível independentemente de qualquer reforma constitucional, mas é preciso avançar nesta questão e não tomar as decisões lavando as mãos.

CC: Falando em reforma constitucional, a PEC 215 foi aprovada em Comissão Especial da Câmara e segue para o Senado, onde dois terços dos senadores se manifestaram contra a proposta. Você acredita que a proposta será aprovada pelo Congresso? E, se for, o que pode ser feito?

DD: O Ministério Público Federal vai organizar nesta quinta-feira 26 uma audiência pública para pensarmos em estratégias em relação à PEC e já produziu uma nota técnica com todas as inconstitucionalidades da proposta. Antes disso, deputados do PT entraram com um mandato de segurança contra a PEC 215, pedindo a paralisação de sua tramitação. O mandato foi indeferido pelo ministro do STF, Luis Barroso, que disse que a proposta tem indícios de inconstitucionalidade, mas que irá esperar pela decisão do Congresso. Ou seja, o Supremo já deu sinais de que considera essa PEC inconstitucional.

CC: Ou seja, mesmo se a PEC 215 for aprovada no Congresso, ela tem poucas chances de efetivamente virar lei?

DD: Sim. Até porque essa PEC é um absurdo. Com ela, a questão indígena acaba definitivamente.

CC: Além disso, essa semana a Câmara aprovou a criação de uma CPI para investigar a atuação da Funai e do Incra nos processos de demarcação de terras…

DD: Ela deve ser a 30ª CPI a respeito disso… É recorrente. Desde que eu trabalho com essa questão, há mais de 30 anos, eu já fui a diversas comissões para investigar a Funai e o Incra. É uma reação de um setor que se viu ameaçado pelo processo constituinte com a reforma agrária e depois foi surpreendido pelas terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação ambiental… e não se conformam.

CC: Por outro lado, a Funai desde 2014 tem sofrido com diversos cortes e demissões…

DD: Sim, poderíamos investigar a Funai pelo que ela não faz.

CC: Na sua opinião, a Funai está enfraquecida?

DD: Muito enfraquecida. Tanto é que estamos chamando uma reunião com o presidente da Funai para saber do concurso, anunciado pela presidenta Dilma no dia 19 de abril, e que até agora não foi convocado. A Funai não faz concurso, não se reestrutura, está cada vez mais desidratada…

CC: E em relação à polêmica proposta de criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (Insi)? O Insi pode ser positivo?

DD: O Ministério Público Federal fez uma nota pela inconstitucionalidade do Insi. A saúde indígena já esteve sobre a alçada da Funai, passou para a Funasa e hoje está nas mãos do Ministério da Saúde. A saúde indígena é um subsistema do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto que o Insi é a privatização da saúde indígena. Nós temos que apostar em uma saúde pública de qualidade e isso foi muito pouco testado até o momento. Nós não temos nem 30% do subsistema implantado, então não é possível mudar o modelo sem nem ao menos testá-lo.

CC: Existem algumas ações que buscam dar qualificação dentro das próprias comunidades indígenas…

DD: Sim, em todas as comunidades existe a figura dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e dos Agentes Indígenas de Saneamento Básico (Aisan). Há capacitação para isso. Cada vez mais, os próprios indígenas se deram conta de que é preciso que eles se formem porque enquanto a saúde não puder ser gerida por eles, eles dificilmente terão médicos. O que salvou muito a saúde indígena foi o Programa Mais Médicos. As nossas universidades formam para o atendimento à elite. O Insi é uma tentativa de pagar altos salários e sair das amarras do controle público, da licitação e dos salários públicos na esperança de ter médicos para a saúde.

CC: Hoje, o modelo dos Mais Médicos funciona bem para a saúde indígena?

DD: Ele funciona diante de um modelo anterior onde não tinha médico. Ou seja, não é uma questão de dizer se é melhor ou pior, ele existe quando antes não existia. Com ele, conseguimos levar médicos para o Vale do Javari, que tem a maior pandemia de hepatite e onde nunca havia chegado um médico.

CC: A senhora mencionou a organização das comunidades e lideranças indígenas. Este ano, em abril, lideranças ocuparam Brasília para pressionar o Ministério da Justiça e se reuniram com membros do STF. Hoje, os índios não possuem nenhum representante político no Congresso, mas eles estão se fortalecendo dentro do ambiente democrático brasileiro?

DD: O movimento deles é muito forte. Se não fossem eles, a PEC 215 já teria sido aprovada e as decisões do STF sobre o marco temporal e as demarcações já estariam consolidadas. Graças a eles que essa luta continua. Temos um País com traços de colonialismo e escravidão dos quais não nos libertamos. A luta contra os setores hegemônicos é muito difícil, mas eles estão conseguindo levá-la adiante.

CC: Como lutar no Congresso contra essas ações conservadores?

DD: Da forma como eles fazendo: se fazer presentes o tempo todo.

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