Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

Tiroteios e masculinidades

A forte relação entre masculinidade e violência pode ser observada nos casos de tiroteio em massa dos Estados Unidos

Joe Raedle / Getty Images / AFP
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É entristecedora a frequência com que notícias sobre tiroteios em massa nos Estados Unidos pautam a mídia internacional. O FBI define um assassinato em massa como um incidente envolvendo quatro ou mais vítimas e, de acordo com esta definição, desde 2006 mais de 200 ocorreram no país.

A mais recente manifestação pública de uma tragédia assim se deu no domingo 12 de junho no clube noturno Pulse em Orlando, Flórida. A casa era reconhecida como um “espaço seguro” LGBT, e a morbidez da ironia post-factum só faz colaborar com a intricada narrativa que envolve este infeliz evento.

Não faltaram versões sobre o responsável pelo ataque, Omar Mateen, morto a tiros pela polícia. Ao mesmo tempo em que circulavam histórias enquadrando o cidadão norte-americano e filho de imigrantes afegãos como um rapaz solitário, de comportamento instável, com perturbações mentais e inclinação para a violência, o presidente Barack Obama o qualificava como um bom exemplo do “extremismo cultivado em solo doméstico”.

Na profusão de matérias sobre Mateen aprendemos que ele era filiado ao partido democrata, que já tinha sido investigado pelo FBI, que não tinha ligações oficiais com o Estado Islâmico, que era homofóbico, e que havia sido casado, mas por poucos meses e o divórcio aconteceu em virtude de violência doméstica.

Inferências apressadas a partir de informações como estas apontam para os mais diversos preconceitos – não os do atirador, mas sim os da audiência. Ao mesmo tempo em que contemplamos a salada midiática que se tornou a subjetividade de Mateen, nos embrenhamos em uma salada interpretativa sobre suas supostas motivações para o crime.

É sempre assim com as narrativas que reportam massacres públicos deste porte: mudam o cenário e os grupos aos quais pertencem as vítimas e algozes e, com eles, mudam os comentários de repúdio – ao horror e a quem o cometeu.

Os fatos e as histórias não são particularmente coerentes, e tampouco os números são confiáveis – de acordo com pesquisa feita pelo jornal USA Today sobre ataques como esse, mesmo os dados do FBI são imprecisos. Ainda assim, algumas circunstâncias comuns a estes eventos são relativamente previsíveis – como, por exemplo, o gênero de quem os empreende.

Os efeitos nocivos da masculinidade tóxica merecem atenção, especialmente nestes casos, e o brilhante trabalho do sociólogo Michael Kimmel por décadas vem iluminando as relações entre masculinidades e violência.

Logo após um destes tiroteios (Sandy Hook, em 2012), Kimmel sugeriu que é preciso expandir a conversa sobre crimes assim, propondo que o elemento “gênero” seja sempre criteriosamente analisado junto às outras motivações citadas com frequência, como acesso facilitado a armas ou aflições psíquicas. Os números justificam essa proposição.

Massacres públicos somam 15% das mortes por assassinatos em massa nos Estados Unidos. Chocantemente, 53% destes ataques – a maioria dos casos, portanto – ocorre em ambientes domésticos, e em razão de coisas como relacionamentos terminados e discussões familiares. Não chegamos a ficar sabendo da maioria deles, afinal as notícias geralmente enquadram tais crimes como disputas da ordem privada.

Imagens como as da tragédia de Orlando capturam a atenção do mundo, mas cenas parecidas acontecem com uma constância alarmante, e bem longe do nosso escrutínio. Segundo a já citada investigação do USA Today, para a qual foram examinados dados do FBI, bem como relatos em delegacias de polícia e veículos de comunicação regionais, crimes desta natureza acontecem com muito mais assiduidade do que os relatórios oficiais e a grande mídia reportam.

Somando-se os massacres públicos, que tendem a ser bastante noticiados, e os privados, que tendem a não virar manchete, um número salta aos olhos: 94% dos suspeitos de cometer assassinatos em massa – dos dois tipos – são homens. Este dado é muito significativo para ser desconsiderado.

Como Mateen, cada um dos homens que compõem estes 94% é constituído por uma série de eixos de identidade – como classe, credo, cor – que, sozinhos, não dariam conta de explicar porque cada um cometeu seu crime. Nem mesmo o eixo “gênero” poderia – vide os outros 6% de suspeitos.

Assim é impossível sabermos com exatidão quais foram as motivações de todos estes homens. Além do mais – e como também é o caso com Mateen – um número alto deles não sobrevive aos ataques, que muitos inclusive premeditam como uma forma de suicídio.

No caso de Orlando, diferentes fontes apontam para diferentes interpretações sobre as supostas motivações: terrorismo doméstico, extremismo religioso, crime de ódio, homofobia, xenofobia, ou todos, ou nenhum.

O maior tiroteio em massa da história dos EUA (ou ao menos dos séculos XX e XXI, pois se fôssemos incluir massacres indígenas e do período escravocrata nesta conta, bem, a equação teria que ser outra) aconteceu na noite latina de uma boate gay pelas mãos de um americano muçulmano declaradamente homofóbico e comprovadamente misógino.

É um caso complexo, e a narrativa deste horror é tão pós-moderna quanto a exposição midiática da subjetividade de seu protagonista. Mas ainda assim ele não deixa de ser um homem.

Podemos e devemos e é certo que continuaremos especulando sobre as motivações e disputando as narrativas sobre este evento, seja comparando-o com outros ou reforçando suas especificidades. As dores são reais, e múltiplas, e talvez cada interpretação some porções importantes à história toda.

Mas não é preciso ser feminista para observar – meramente observar – que ao menos um dos dados demográficos que definem quem são os atiradores em massa dos Estados Unidos evidencia uma forte relação entre violência e masculinidade.

Todos os homens são violentos? Não. Mas Omar Mateen, assim como 94% dos suspeitos e 61 dos 62 atiradores responsáveis pelos assassinatos em massa dos últimos 30 anos nos EUA, era um homem. Há um padrão de violência aí que não deve ser menosprezado.

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