Sociedade

Um poço de sabedoria

Como asseverou o Monteiro Lobato em um de seus contos (e parece que isso já foi a reprodução do que alguém antes havia dito), a vida copia a arte

Illusions Perdues (Ilusões Perdidas), clássico de Honoré de Balzac
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Ontem o Adamastor me procurou mais ou menos indignado, e entrou na minha sala dizendo que o Balzac havia-se inspirado num cunhado seu, morador no Cabo da Boa Esperança, para criar o Astolfo. Descobri, então, que o Adamastor está lendo as Ilusões perdidas do francês. E para que eu não mantivesse mais o ar de espanto e dúvida com que o ouvia, resolveu ler ali mesmo o trecho de um parágrafo do romance em questão.

“Astolfo passava por sábio de primeira ordem. Ignorante como uma carpa, nem por isso deixara de escrever os verbetes ‘açúcar’ e ‘aguardente’ de um dicionário de agricultura, dois artigos compilados aos pedaços de todos os comentários de jornal e obras antigas que tratassem desses dois produtos. Todo o departamento o julgava ocupado num compêndio sobre a cultura moderna. Não obstante passar toda a manhã encerrado em seu gabinete, não escrevera sequer duas páginas nos últimos doze anos. Se alguém ia vê-lo, deixava-se surpreender misturando papéis, procurando uma nota perdida, ou aparando a pena; empregava, porém, em frioleiras todo o tempo que ficava em seu gabinete; lia demoradamente o jornal, esculpia rolhas a canivete, traçava desenhos fantásticos sobre a pasta ou folheava Cícero para tomar ao acaso uma frase ou passagens cujo sentido se pudesse aplicar aos acontecimentos do dia. Depois, à noite, esforçava-se para levar a conversa a um assunto que lhe permitisse dizer: ‘Há em Cícero uma página que parece ter sido escrita para o que se passa em nossos dias’. Recitava então sua passagem com grande assombro dos ouvintes, que diziam entre eles: ‘Verdadeiramente, Astolfo é um poço de sabedoria’. “

Terminada a leitura pôs-se a me observar, esperando minha reação.

Bem, como sei que o Adamastor não é muito bom em História e confunde muito estas questões de datas, me dei ao trabalho de informar-lhe que o escritor francês, tendo nascido no último ano do setecentos, veio a falecer em 1850, informação que se obtém com a maior facilidade em qualquer site de busca. Ele concedeu que nessa época seu cunhado não habitava ainda este mundo.

E para consolo de meu amigo, acabei falando daquele médico do Triste fim de Policarpo Quaresma, o Armando Borges, marido da Olga. E mais, muitos mais exemplos idênticos em toda a literatura.

Quando o café chegou, finalmente, estávamos os dois conferindo a lista de pessoas, todas elas conhecidas nossas,  que estariam sendo copiadas pela literatura. Ou, como asseverou o Monteiro Lobato em um de seus contos (e parece que isso já foi a reprodução do que alguém antes havia dito), a vida copia a arte.

Quanto Astolfo anda solto por aí lendo orelha de livro e se passando por pessoa culta.

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