Sociedade

Violência e intimidação impedem debate sobre mineração no Pará

Pesquisadora presente em evento sobre projetos da canadense Belo Sun relata truculência do prefeito Dirceu Biancardi (PSDB), que teria coagido a plateia

Dirceu Biancardi é acusado de ter impedido a saída de participantes de evento
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Vivemos tempos sombrios no Brasil, e as universidades, espaços abertos para o diálogo e confronto de ideias, estão cada vez mais sendo ameaçadas por uma onda obscurantista e intolerante. Uma pesquisadora que estuda gênero e diversidade na Universidade Federal da Bahia foi ameaçada de morte, justamente por pesquisar a democracia e as liberdades. Em Minas Gerais, o professor líder do grupo de estudos sobre comunismo passou a sofrer assédio do MPF. E, agora, no caso mais recente, o bangue-bangue do velho oeste amazônico invadiu a Universidade Federal do Pará, em Belém.

O prefeito da cidade Senador José Porfírio, defendendo os interesses de uma mineradora de ouro canadense, invadiu um debate e intimidou os participantes. Motivo do ódio: pesquisar e debater os efeitos da mineração de ouro no Xingu.

A professora Rosa Acevedo, que coordenava o seminário, prestou um boletim de ocorrências na Polícia Federal. A reitoria da UFPA emitiu uma nota de repúdio na qual destaca o imenso risco à democracia que representa tal ato. 

Abaixo, o relato de Sabrina Nascimento, pesquisadora, doutora pela Universidade Paris 13 e em Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), na Universidade Federal do Pará (UFPA), e que estava presente no momento da invasão.

Por Sabrina Mesquita do Nascimento

O Rio Xingu, que já está sofrendo com a construção da hidrelétrica de Belo Monte, vive agora com a ameaça iminente da instalação da mineradora canadense Belo Sun, que pretende extrair milhões de toneladas de ouro das reservas existentes na Volta Grande. Nesse contexto, o seminário “As veias abertas da Volta Grande do Xingu”, organizado em parceria pelo Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Fundação Rosa Luxemburgo e UFPA, visava apresentar estudos que discorrem sobre os efeitos da instalação da mineração num rio já afetado por uma grande hidrelétrica.

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A abertura do evento estava marcada para as 15h. Por volta de 14h30, as pessoas começaram a se deslocar para o auditório. Foi quando uma comitiva com cerca de 40 pessoas, liderada pelo prefeito do município de Senador José Porfírio, na região da Volta Grande do Xingu, Dirceu Biancardi (PSDB), chegou gritando palavras de ordem em favor da instalação da Belo Sun e acusando os organizadores do evento de não tê-los chamado para a “audiência pública” e invadindo a sala.

Acontece que o evento não era audiência pública, mas um seminário acadêmico, e que apresentaria pesquisas realizadas dentro de uma universidade pública, a UFPA. Vale ressaltar que a Belo Sun, maior interessada na autorização da mineração no Xingu, estava presente com cinegrafista para registrar todo o ocorrido, gravando depoimentos em favor da empresa dentro do auditório.

A professora titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, da UFPA, Rosa Acevedo, que iria coordenar os trabalhos, achou que, por uma questão de segurança, era necessário cancelar o evento, pois as pessoas, devidamente incitadas pelo prefeito, estavam bastante alteradas e o risco de violência física era evidente. As pessoas do Movimento Xingu Vivo, organização social que luta pelos direitos das populações atingidas por megaprojetos no rio Xingu, tiveram seu direito à manifestação cerceado pelo risco de serem agredidas de fato.

Ao informar no auditório que o evento estava cancelado, a professora Rosa foi atacada pelo grupo aos gritos, pegaram-na pelo braço e exigiram que o evento fosse mantido porque eles estavam ali para defender a Belo Sun. Atacaram, sempre aos gritos, a UFPA, como se não fosse papel da universidade questionar a mineração. A professora Rosa tomou a decisão de cancelar o evento diante dos ânimos belicosos e violentos. A falta de segurança era evidente e o grau de hostilidade era muito alto para correr o risco.

A tentativa da professora de evitar a violência acabou fazendo com que ela fosse violentamente atacada e as pessoas que estavam presentes foram simplesmente trancadas no auditório, e mantidas em cárcere privado pelo prefeito e seus apoiadores. Ninguém saía, ninguém entrava.

Dentro do auditório, o prefeito Dirceu Biancardi estabeleceu as próprias regras e se colocou na mesa para falar, dando ele próprio início ao evento que a professora Rosa havia acabado de cancelar. Ou seja, os participantes foram forçados a permanecer para escutar o prefeito. A defensora pública que estava presente tentou conduzir os trabalhos e acalmar os ânimos, mas o prefeito se abancou na mesa ao lado dela e o evento ocorreu assim, com todos coagidos.

Logo depois, o deputado estadual Fernando Coimbra (PSD) também chegou ao auditório, sentando-se lado de Dirceu Biancardi, ambos em apoio à Belo Sun.

A professora Rosa sentou-se na plateia e mal voltou a falar. Ela foi violentamente silenciada dentro de um espaço em que nós, pesquisadores da UFPA, julgávamos ter alguma autonomia. Por sua vez, o prefeito assumiu seu belo posto à força, da forma mais arbitrária que podemos imaginar. Arbitrário como os projetos que ele defende. Se foi capaz de agir assim em um evento público na Capital, é de se imaginar o risco a que ativistas estão expostos na região onde a mineradora pretende se instalar. A porta do auditório só foi reaberta quando uma equipe de TV chegou ao local. 

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Quando eu saí para procurar a segurança do campus, fui achincalhada no caminho, até a porta, com pessoas afirmando que aqueles pesquisadores deveriam ser levados para tomar ferrada de pium no garimpo pra que parássemos com essa tolice de atrapalhar o desenvolvimento dos outros.

Nunca respirei tão fundo na minha vida inteira. Eu já levei muita ferrada de pium, evidente que não como eles. Mas eu presumo que, se mil piuns é ruim, um milhão de piuns é muito pior. E é o que vai acontecer quando as águas do Xingu apodrecerem com a mineração e a hidrelétrica. Os peixes já estão morrendo em poças d’água podres, resultado do barramento das águas por Belo Monte.

Recentemente, ouvi relatos de que as pessoas rezam para chover e dar uma enxurrada que leve os peixes, para eles pararem de agonizar. Já vi pescador largo chorando como criança porque os peixes estavam morrendo daquela forma no Xingu.

O clima de tensão era muito forte e o prefeito transformou o espaço no seu palanque próprio. No fim, os grupos saíram separadamente, pois o medo estava instalado naquele auditório. Todos os que estavam ali ficaram simplesmente em estado de choque.

Demoramos a absorver a pancada e, ressalto, tudo o que aconteceu serve para revelar os mecanismos escusos que estão por trás desses grandes projetos. Empresas e governos jogam com a vida das pessoas e dos outros seres vivos, incluindo nossos encantados e tudo significa a Amazônia para nós. Foi como disse Geovani Krenak no outro evento que estava sendo realizado na UFPA. “As empresas acham que ainda está muito difícil conseguir instalar esses projetos, elas querem que fique mais fácil”.

E talvez isso inclua poder calar e matar todos aqueles que se opõem aos crimes contra a vida perpetrados com a construção de um grande projeto. Precisamos resistir.

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