Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

As Marias e a estranha mania de ter fé na vida

Leitura bíblica desenvolvida por teólogas evangélicas e católicas tem recuperado o lugar das mulheres na história da fé cristã

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Este é um dia católico no Brasil dedicado à Nossa Senhora Aparecida, uma das expressões de Maria, mãe de Jesus. Descartadas as discussões sobre como um feriado nacional religioso como este fere o princípio do Estado laico, Aparecida é especialmente lembrada neste 2017 pois são celebrados os 300 anos em que a imagem da santa foi encontrada no rio Paraíba do Sul (no ano de 1717). E isto impulsiona a reflexão aqui neste espaço.

Evangélicos não veneram Maria, tampouco Nossa Senhora Aparecida. Essa é uma das grandes diferenças entre a doutrina evangélica e a católica. Para os evangélicos, Maria é uma das tantas personagens, narradas nos textos da Bíblia, que participaram do projeto redentor de Deus para o mundo. Foi especial por ser conhecida como aquela que foi escolhida por Deus como mãe de Jesus.

No Brasil, o caráter de minoria religiosa do segmento evangélico e sua postura predominantemente anticatólica, tornou seus princípios de fé ainda mais redutores da figura de Maria. Ela é raramente lembrada em pregações, na educação religiosa, à exceção do Natal (data em que aparece com maior destaque) e em algumas situações na Páscoa (memória cristã da morte e da ressurreição de Jesus).

No entanto, nas últimas décadas, a leitura bíblica desenvolvida por teólogas evangélicas e católicas junto com participantes das comunidades cristãs espalhadas Brasil afora, tem recuperado o lugar das mulheres na história da fé cristã. E essas leituras vão redescobrindo como a figura de Maria é inspiradora para cristãs e cristãos e também para todas as pessoas.

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Como já cantava o poeta: “Maria, Maria é um dom…  é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre… Quem traz no corpo a marca Maria, Maria, mistura a dor e a alegria… é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre… Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”. 

Tive a belíssima oportunidade de ter sido convidada, em julho passado, como evangélica, para falar sobre Maria e as Marias, em missa da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, em Itaquera, na cidade de São Paulo. Ali partilhei sobre como estes elementos me inspiram: Maria como a que misturava dor e alegria e a que tinha fé na vida. Passo a reproduzir aqui essas ideias.

Maria era de Nazaré. Não era da capital ou de uma grande cidade, mas de um lugar periférico, pequeno. Por isto ela sabia muito bem o que era pobreza, discriminação. Ser pobre, de Nazaré, e ser mulher não era fácil! E ao entrar para a história como mãe de Jesus, Maria era ainda uma adolescente, aprendendo a lidar com as dores do ser mulher. Mas misturava tudo isso com alegria.

As narrativas bíblicas contam que Maria canta a alegria de participar do projeto de Deus, trazendo Jesus ao mundo, num momento em que tem que fugir para a casa da prima Isabel para esconder a gravidez precoce. Ela sofre mas tem a alegria por ter tido uma experiência de fé com um Deus que não morava no templo da capital, como os religiosos da época tentavam fazer crer. Ela descobre um Deus que se importa e valoriza todas as pessoas, sem distinção.

Assim viveu Maria de Nazaré, que encontrou força mesmo continuando a viver dores. Sim, que dureza ser mãe de um filho preso, torturado e condenado à morte! Maria sofreu estas agonias mas não perdeu a fé na vida.

O poeta chama isto de “estranha mania”. Afinal, hoje tudo coopera para que se perca a fé na vida. Violências, negação de direitos, injustiça, discriminação… fontes para depressão, suicídios, rendição às drogas e à criminalidade. Mas quem tem “manha, graça, sonho” e mistura dor e alegria, vê e vive a vida de outro modo.

Há muita inspiração que brota de Maria e das tantas Marias que seguem a trilha desta mistura. Muitas histórias ao longo dos séculos até chegar aos nossos dias. Mulheres que acreditaram, tiveram força, lutaram por direitos, pela terra, pela democracia e pela liberdade. Elas foram/vão até o fim e dedicam suas vidas em nome da fé na vida. Poderíamos citar tantas na nossa história passada e presente… quem lê este texto pode fazer o exercício de nomear estas “Marias”.

O valor desta reflexão tem sido identificado até mesmo em espaços acadêmicos de instituições evangélicas. Este foi o caso da Semana de Estudos de Religião da Universidade Metodista de São Paulo, em setembro passado. A propósito dos 300 anos da imagem de Nossa Senhora Aparecida, o evento “Imagens femininas de Deus e devoções marianas na América Latina” destacou a relevância da fé para a construção de identidades de mulheres em suas lutas por direitos e reconhecimento.

Portanto, neste 12 de Outubro, em que católicas/os celebram a Maria de Aparecida, aproveitemos para celebrar e aprender com o dom das “Marias”, daquelas que trazem na pele a marca da manha, da graça, do sonho, fontes da “estranha mania de ter fé na vida”.

 

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