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O ódio ao MST e às ocupações de terras improdutivas

As ocupações são capazes de acionar conflitos que remetem à essência das disputas mais centrais pelo poder na sociedade brasileira

Atualmente uma das demandas do movimento é que 200 mil famílias sejam assentadas até o fim do governo Lula - Foto: Gilvan Oliveira /MST
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A não realização da reforma agrária no Brasil é uma de nossas principais lacunas históricas e, certamente, uma das grandes dívidas de nossa democracia para com o povo. Não se trata apenas de omissão ou incapacidade do Estado para fazê-la, mas também, e talvez principalmente, da violência perpetrada por setores de nossas “elites” contra qualquer tipo de avanço nessa direção.

Há 28 anos, o Brasil ganhou as manchetes em jornais do mundo todo em razão de um fato ocorrido em plena “democracia”: o massacre de Eldorado dos Carajás (município localizado no estado do Pará), ocorrido no dia 17 de abril de 1996. Durante um ato do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) na BR 155, mais de uma centena de policiais militares fortemente armados, sob ordens do governo do estado, investiram contra os militantes sob o pretexto de desobstruir a rodovia. O resultado: 19 trabalhadores sem-terra brutalmente assassinados.

Segundo relatos: “os trabalhadores foram cercados. De um lado policiais do quartel de Parauapebas, do outro policiais do batalhão de Marabá. Dos 19 mortos, oito foram assassinados com seus próprios instrumentos de trabalho: foices e facões, os outros 11 foram alvejados com 37 tiros, uma média de quatro tiros para cada pessoa. Outras 79 pessoas ficaram feridas. Duas delas faleceram no hospital. A polícia matou camponeses com tiros na nuca, na testa – em claro sinal de execução. Um teve a cabeça esmagada”.

Apesar de ter chocado o País e o mundo, a brutalidade que marcou este episódio continua existindo até hoje no Brasil, de forma mais ou menos intensa, a depender do contexto. Os atos de violência no campo contra ativistas engajados na luta pela terra e em prol das pautas socioambientais ainda ocorrem em níveis alarmantes, segundo critérios de organizações internacionais. Trabalhadores sem-terra e as populações indígenas e quilombolas continuam sendo, ao que tudo indica, as principais vítimas dessa violência institucional e extra institucional, na qual o legal e o ilegal caminham lado a lado para manter o poder das oligarquias agrárias e inviabilizar a realização de uma reforma agrária que faça jus à nossa histórica concentração fundiária.

Invasão Zero e a escalada da violência

Mais recentemente, o caráter violento das ações contrárias à reforma agrária e, mais especificamente, contra as ocupações do MST, ganhou novos e dramáticos contornos. Referimo-nos aqui a um “movimento” que nasce justamente na intersecção entre as forças oficiais de segurança e os grandes proprietários de terra. O grupo, autointitulado Invasão Zero, deu os primeiros indícios públicos de sua existência já no início de 2023, mas tornou-se mais conhecido nacionalmente cerca de um ano depois. Embora a maior parte das análises e reportagens sobre o Invasão Zero não tenha feito essa relação, parece um tanto quanto óbvio que seu nome busca fazer um contraponto explícito à Campanha Despejo Zero (CDZ), uma rede constituída por um conjunto de movimentos populares, organizações civis e grupos acadêmicos, que foi criada para fazer frente ao avanço das remoções forçadas (muitas delas, ilegais) em pleno contexto da pandemia. A CDZ conquistou relevante espaço na opinião pública e obteve importantes vitórias junto ao STF, contribuindo para barrar diversos despejos de famílias de baixa renda.

O Invasão Zero, por outro lado, situa-se no campo oposto. O homem apontado como principal articulador e criador do grupo é o fazendeiro Luiz Henrique Uaquim da Silva, pecuarista e cacauicultor do sul da Bahia que atua há vários anos contra políticas de demarcação de terras indígenas na região.

Notícias recentes apontam que o Invasão Zero está sendo investigado pela Polícia Federal. Segundo as denúncias, trata-se de um movimento ruralista constituído por “agrupamentos paramilitares de produtores rurais para retirar à força movimentos sociais que estão em ocupações rurais (MST) ou retomadas de territórios tradicionais (indígenas)”. Dentre várias ações já empreendidas pelo grupo, vale destacar uma realizada em janeiro de 2024 no município de Itapetinga (BA), que culminou no assassinato de Nega Pataxó, uma líder espiritual do povo Pataxó Hã Hã Hãe. De acordo com as apurações, “ela foi morta a tiros pelo filho de um fazendeiro ligado ao Invasão Zero, após o movimento convocar produtores rurais para expulsar indígenas que ocupavam uma fazenda”[2].

Dida Souza, uma das principais lideranças do Invasão Zero, detalha sem constrangimento algum o modus operandi do grupo: “Se ocorre uma invasão na sua terra, você coloca dentro do grupo que participa. Manda sua localização, diz o que está acontecendo, quem está indo, quantos são e todo mundo dos núcleos ao redor se une e vai tirar o invasor”.

Complementando com outra fala, desta vez do pecuarista L. Henrique Uaquim (o fundador do Invasão Zero): “Se você tem uma fazenda invadida, vai procurar quem? No Rio de Janeiro você chama a milícia? No seu estado você chama o PCC? Não. Você tem que procurar a delegacia e fazer o BO. A Polícia Militar tem a obrigação de lhe socorrer porque ela é feita para manter a lei e a ordem. E, neste caso, você está sendo esbulhado, invadido, por um grupo”.

Ambas as falas são quase que confissões. Ao que tudo indica, trata-se de grupos que agem aos moldes de milícias paramilitares, com apoio de agentes do próprio Estado. De certa forma, a existência do Invasão Zero revela que a configuração das relações de poder na sociedade brasileira pouco ou nada mudou ao longo destes 28 anos após o massacre de Eldorado dos Carajás.

A origem do problema

Uma das reflexões mais importantes no contexto deste conflito é a (já clássica) guerra semântica estabelecida entre os dois lados desta disputa: invasão x ocupação. Tal controvérsia envolve, mais especificamente, tanto o MST e outros movimentos rurais de ocupações de terras, como também os movimentos urbanos que atuam com lógica semelhante – com destaque para o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Não por acaso, MST e MTST se tornaram alvos preferidos dos discursos de ódio proferidos por políticos e figuras públicas ligadas à extrema-direita no Brasil no contexto de ascensão do bolsonarismo – e também durante todo o governo do ex-presidente, hoje inelegível.

Mas qual é, exatamente, a raiz de todo esse ódio contra os movimentos de ocupação de terras ociosas? Nosso argumento é que as ocupações promovidas pelo MST e movimentos similares são capazes de acionar conflitos que remetem à essência das disputas mais centrais pelo poder na sociedade brasileira, ou seja, os conflitos relacionados à propriedade fundiária. A concentração fundiária é, ainda hoje, um dos principais mecanismos da distribuição desigual do poder político no Brasil, mantendo intocadas determinadas estruturas de privilégios que contribuem para a reprodução de diferentes formas de violência, autoritarismo e hierarquias sociais, que, em um círculo vicioso, impedem os avanços sociais e políticos necessários para a redistribuição desta riqueza social fundamental que é a terra.

É claro que tudo isso continua sendo alimentado por concepções ideológicas que colocam a propriedade privada como um direito sagrado, acima de qualquer outro – inclusive da própria vida. Na visão das oligarquias rurais e da burguesia que tem seus negócios ligados à terra, o MST é um grupo criminoso e até mesmo terrorista, uma vez que invade terras alheias e atenta contra um princípio básico do Estado democrático: a propriedade privada.

Este argumento, contudo, não resiste a uma análise minimamente crítica. Em primeiro lugar, é sempre importante lembrar a distinção entre legalidade e legitimidade. O discurso dominante tem como finalidade desconstruir a legitimidade das ocupações em função de sua suposta condição jurídica: por serem ilegais, as “invasões” são necessariamente ilegítimas enquanto forma de luta. Mas, legitimidade e legalidade não são equivalentes. Uma luta pode ser legítima, mesmo sem ser legal. Quantas vezes ao longo da história da humanidade testemunhamos momentos no qual isso se confirmou? Afinal, a luta dos escravos pela sua libertação era uma luta contra a lei. Mas quem poderia dizer que não era legítima? Por muito tempo, o direito de greve não era reconhecido juridicamente, mas os trabalhadores faziam greve para lutar por melhores condições de trabalho, melhores salários e direito a férias. Quem poderia dizer, portanto, que a greve não era legítima, mesmo sendo ilegal?

Contudo, no caso das ocupações, esse debate é ainda menos “turvo”. As ocupações do MST não são apenas legítimas, mas também legais. Explico: no ano de 1997, em uma decisão envolvendo um pedido de habeas corpus para quatro lideranças do MST que estavam sendo acusadas de esbulho possessório (crime contra o patrimônio) e formação de quadrilha, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela liberdade dos réus. Na ementa da decisão, consta o seguinte trecho: “Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante de Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático (HC 5.574/SP, 1997)”.

No ano anterior (1996), em decisão também relativa a um processo de “invasão” de terras por militantes ligados ao MST, o STJ já havia esclarecido que é necessário distinguir uma forma legítima de ação popular de uma ação criminosa: “A conduta do agente do esbulho possessório é substancialmente distinta da conduta da pessoa com interesse na reforma agrária (HC 4.399-SP, 1996)”.

Não é invasão, mas ocupação

Quando um latifundiário que, por diversas razões, descumpre o preceito constitucional da função social da propriedade (seja porque mantém sua terra improdutiva, seja porque mantém pessoas trabalhando ali em condição análoga à escravidão), tem sua terra apropriada pelo MST, ele não está sendo esbulhado e nem invadido. Está sendo justa e devidamente pressionado a cumprir com a lei e, mais especificamente, com aquilo que está instituído pela Constituição Federal de 1988.

Colocado neste contexto, torna-se totalmente compreensível o ódio ao MST e às ocupações de terras. Com sua luta, estes atores colocam o dedo em uma das feridas mais profundas da sociedade brasileira, questionando privilégios seculares e nos lembrando de promessas não cumpridas pela nossa democracia. O MST é um dos movimentos sociais mais importantes do mundo e sua luta é essencial para o avanço democrático no Brasil. Sem ocupação, não há reforma agrária. Sem reforma agrária, não há democracia. Que neste Abril Vermelho de 2024, os 28 anos do massacre de Eldorado dos Carajás sejam relembrados em todo o País com muitas ocupações de terras descumpridoras de sua função social.

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