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Governo islâmico balança na Tunísia

Enquanto isso, persiste a ambígua relação entre líderes e radicais salafitas

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De Túnis

“A relação entre os salafitas e os integrantes do partido governista Ennahda inexistem”, diz um homem encapuzado e a trajar uma túnica marrom. “Nós, salafitas, separamos a religião da política. Nosso objetivo é estabelecer a sharia e basta.”

Indagado como os salafitas pretendem implementar a sharia (Lei de códigos islâmicos) se não através da política, o jovem de 23 anos com uma espessa barba negra, retruca: “Não o faremos através da violência, como a mídia quer fazer transparecer, mas convidando as pessoas a participar de nossa crença”.

E, no entanto, observo, em setembro de 2012 salafitas atacaram a embaixada dos Estados Unidos na Tunísia. Houve centenas de presos. Salafitas teriam participado de outros ataques, inclusive no Egito. E estariam lutando com a Al-Qaeda no Mali.

Para minha surpresa, o meu conterrâneo não fica enfurecido. Calmo, ele diz: “Essas são fabricações da mídia, e se você escrever o que acaba de dizer estará propagando mais esse mito”.

Neste domingo 10 cai uma garoa fina e faz frio em Túnis. Estamos em Intilaka, um bairro popular de comerciantes nos subúrbios. Salafitas, esses religiosos ultraconservadores favoráveis a um retorno às velhas práticas do Islã, transitam pelo bairro pontuado por mesquitas.

Comerciantes, a vasta maioria deles eleitores da legenda governista islâmica Ennahda, que dirige uma coalizão com dois partidos seculares desde o pleito de outubro de 2011, se sentem impotentes diante da contenda entre integrantes do governo.

  

A crise política foi deflagrada na quarta-feira 6, quando um líder oposicionista, o advogado de direitos humanos de esquerda Chokri Belaid, foi assassinado com três tiros diante de sua casa.

Na sexta-feira, uma greve geral, a primeira desde 1978, reuniu 50 mil pessoas oriundas de sindicatos, de partidos esquerdistas e de meios liberais.

O protesto, que coincidiu com o enterro de Belaid, de 48 anos, em Túnis, foi transformado em uma revolta para pedir a demissão do governo.

Para os manifestantes, o governo não lida com a violência contra oposicionistas, que seria provocada pelos salafitas e pelas “Ligas de Proteção da Revolução”. Mais: o objetivo do Ennahda seria reislamizar a Tunísia, o mais laico dos países árabes desde o final dos anos 1950; além disso, o governo não lida com os problemas que deram início, dois anos atrás, à Primavera Árabe: o alto nível de desemprego, de 17% (e mais elevado entre os jovens), e a miséria.

No sábado 9, cerca de 3 mil pessoas manifestaram a favor da política do Ennahda. Os números entre aqueles a protestar nos dois distintos campos, na sexta e no sábado, demonstram como o governo está em minoria.

A Tunísia, como se diz por aqui, “está em ebulição”. Nesta segunda-feira três ministros do Congresso pela República (CPR), agremiação de centro-esquerda do presidente Moncef Marzouki, que confirmariam suas anunciadas demissões resolveram manter o cargos a pedido da legenda governista. Isso por mais uma semana — ou pelo menos até as facções do principal partido do governo se entenderem.

Por um lado, o premier Hamadi Jebali, número dois do Ennahda, ameaça renunciar ao cargo, caso o governo de tecnocratas apolíticos por ele proposto não for formado.

Por sua vez, Rached Ghannouchi, o presidente radical do Ennahda, alega que a crise é política e deve ser solucionada por um governo político, não tecnocrata. Na segunda-feira, o vice-presidente do bureau político do Ennahda, Noreddine Arbaoui, disse a CartaCapital: “Jebali vai aceitar continuar no cargo sem formar um um governo tecnocrata”.

Será?

“As únicas vítimas dessas escaramuças somos nós, os pobres”, diz Noureddine, um comerciante de 54 anos, em Intilaka, o bairro popular. Café em uma mão, cigarro na outra, ele continua: “Nós não temos nada a propor, se eles quiserem nos matar de fome devido aos seus cargos e egos nós morreremos de fome”.

Segundo Noreddine, desde a Revolução de Jasmim que depôs, em janeiro de 2011, Zine-al-Abidine Bem Ali, os preços subiram “dez vezes”. “Antes as pessoas compravam aos quilos, agora levam dois legumes. Tenho até vergonha de ser comerciante.”

Noureddine dá uma tragada, e conclui: “Sabe, vou dizer algo que poderá te chocar: eu preferia o regime de Ben Ali. Pelo menos podíamos comer e beber. Faz tempo que não tomo uma cerveja”.

Se Noureddine não diz em quem votou, Moncef, um articulado programador de informática de 43 anos, oferece: “Votei no Ennahda, como a maioria da população, mas não o faria novamente”. O motivo? “A Constituição, que está sendo redigida, não menciona a sharia.”

Na loja onde vemos roupas amontoadas em pilhas sobre duas longas mesas paralelas, Moncef experimenta uma jaqueta, e emenda: “Mas um governo de tecnocratas seria, no momento, a melhor solução, pelo menos até as próximas eleições”.

Na loja ao lado, um homem espigado com uma barba negra e trajando uma túnica branca, tira o caderno de anotações de minha mão. “O senhor escreveu ‘salafita’”, me diz em fluente francês, ao contrário dos anteriores entrevistados que mesclavam árabe com francês, donde a necessidade de um tradutor.

Sim, mas o senhor não é salafita?

“Não sou um muçulmano praticante e não me interessa falar de política, apenas de religião.”

Mais tarde, um colega em um café no centro de Túnis, explica que salafitas não gostam de serem chamados assim porque há preconceito contra esse nome. Na verdade, existem três tipos de salafitas. Aqueles a participar agremiações políticas, os não violentos e aqueles adeptos à violência, mas estes são uma minoria.

De qualquer forma, existe, de fato, uma união entre os salafitas radicais da Tunísia, Egito, Líbia. Vários deles estariam lutando na Síria e no Mali.

E o Ennahda mantém um dialogo ambíguo com os salafitas.

Após terem sido oprimidos por Ben Ali – quando vários salafitas passaram décadas na prisão –, esses religiosos ultraconservadores foram anistiados após a Revolução de Jasmim.

Abou Ayad, ex-combatente no Afeganistão ao lado dos talibãs, e condenado em 2003 a 43 anos de prisão, hoje é o líder de uma organização salafita chamada Ansar El Charia. Ayad é procurado pela polícia.

Fora do café, na avenida Habib Bourguiba, em homenagem ao primeiro presidente tunisino após a independência da França, em 1956, vejo numerosos militares. Não há manifestação à vista, jovens caminham pacificamente pela avenida. Mas é preciso prevenir qualquer protesto.

Enquanto isso, os dirigentes discutem o futuro do país.

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