Frente Ampla

A narrativa de Tarcísio resistiria às gravações ininterruptas de câmeras corporais?

As ações do governador, além de desvirtuarem o programa inicial, revelam uma intenção de precarização dos equipamentos e de suas funcionalidades

O exitoso programa é boicotado pelo governador Tarcísio de Freitas – Imagem: PMSP/GOVSP
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O governador Tarcísio de Freitas recentemente declarou ‘compromisso’ com o uso de câmeras corporais pelos policiais militares. Uma simples pesquisa online, contudo, revela as inúmeras tentativas anteriores de abandonar o uso desses equipamentos. Entre idas e vindas, Tarcísio foi instado a se explicar ao Supremo Tribunal Federal após a Defensoria Pública do Estado mover uma ação de suspensão liminar, argumentando que a descontinuidade do programa seria um retrocesso na política de segurança. Após a manifestação do STF, o governo estadual apresentou um cronograma visando “estruturar” o uso dos equipamentos.

O uso de câmeras corporais foi implementado em 2020 com o programa “Olho Vivo”. Desde então, diversos estudos demonstraram sua contribuição significativa para a redução do uso da força letal, proteção jurídica e física dos policiais, diminuição no número de PMs vítimas de homicídio em serviço e ganhos de eficiência na ação penal, destacando a importância da gravação ininterrupta durante o turno de serviço. Ou seja, trata-se de um dispositivo que atua como aliado contra o crime e na proteção tanto dos policiais quanto da população.

No entanto, em 2023, o governo deixou de executar a totalidade do orçamento destinado às câmeras, resultando na descontinuidade da expansão do programa. Em 2024, a dotação orçamentária específica foi extinta e a Secretaria de Segurança Pública decidiu integrar as câmeras corporais ao “Programa Muralha Paulista”. Um edital para a substituição dos equipamentos existentes está em andamento e tem sido fortemente criticado por Organizações da Sociedade Civil. O edital prevê um aumento de apenas 17% no número de câmeras (de 10.156 para 12.000) e apresenta várias críticas, como o acionamento manual das gravações pelos policiais, a redução do tempo de armazenamento das imagens e a distribuição não garantida para batalhões que realizam operações policiais.

A proposta de substituir as gravações contínuas por um sistema acionado pelos policiais preocupa. Levantamento da Defensoria Pública de São Paulo aponta que, em amostra de 96 casos de pessoas presas entre janeiro e junho deste ano, os pedidos de acesso às imagens das câmeras policiais não foram atendidos em 58% dos casos. Se o procedimento de acionamento intencional virar prática, como pretende o governador Tarcísio, a efetividade do uso das câmeras corporais em processos judiciais pode reduzir ainda mais.

Além disso, a iniciativa de adicionar tecnologia de reconhecimento facial automatizado às câmeras sugere a intenção de transformar cada agente de segurança em um vigilante constante. Discussões globais apontam para as implicações sociais do uso da inteligência artificial. Em 2020, o Alto Comissariado da ONU publicou um relatório alertando que o uso dessa tecnologia em protestos pacíficos pode violar direitos humanos e aumentar a discriminação, especialmente contra pessoas negras. Em maio deste ano, o Conselho de Ética da Axon, atual empresa fornecedora das câmeras para a polícia de São Paulo, proibiu o reconhecimento facial em seus produtos devido à alta possibilidade de imprecisões, principalmente em condições de pouca luz.

É, no mínimo, suspeito que o governo paulista não tenha simplesmente aditado os contratos vigentes para continuar e aprimorar o que já estava funcionando. Diante da boa avaliação do programa, seria mais prudente aperfeiçoar o monitoramento das imagens e o processo já acumulado, ao invés de publicar um novo edital que modifica de forma expressiva o atual funcionamento do programa. A bem da verdade, as ações do governo Tarcísio, além de desvirtuarem o programa inicial, revelam uma intenção de precarização dos equipamentos e de suas funcionalidades.

A nossa oposição no Parlamento Paulista destaca a importância dessa discussão e questiona a Secretaria de Segurança Pública sobre as decisões controversas do Governo em relação ao uso dos equipamentos. É necessário um debate contínuo e um diálogo constante com especialistas. Reduzir o uso das câmeras a uma dicotomia entre a segurança da população e a vigilância dos policiais é simplista. “Queremos uma população segura, não um policial vigiado”, disse o governador. Não se trata de uma coisa ou outra: o controle da atividade policial não deve ser visto sob o aspecto persecutório, mas como algo necessário e obrigatório para qualquer agente público na execução de suas funções.

É essencial que a gestão de Tarcísio de Freitas siga as diretrizes do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, ouvindo também a sociedade civil, juristas, especialistas e os debates produzidos no Parlamento. Abandonar discursos populistas e firmar um compromisso com uma polícia a serviço do Estado e não deste ou daquele governo, também aumentaria a confiança da população.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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