Política

A esquerda e a tentação liberal

Não se pode mais subestimar o papel do Estado como organizador da vida política, social e econômica

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O Partido dos Trabalhadores vive seu inferno astral. Tomou uma surra nas eleições municipais apenas dois anos após vencer sua quarta disputa presidencial consecutiva. A derrota será inesquecível e atinge amplamente a esquerda e o movimento popular, já duramente impactados pelo golpe. 

Traçar o futuro para as forças progressistas é tarefa das mais árduas. O pior que pode acontecer é todos adentrarem em uma espécie de autoengano ao dizer que “o que passou passou”, “bola pra frente” e deixar “a vida me levar”. É essencial que se façam balanços detalhados e objetivos sobre avanços e recuos desses 13 anos e meio em que o País foi dirigido por uma coalizão encabeçada pelo PT. Sem um exame sério, a esquerda não avançará

Vale a pena, mesmo modestamente, esquadrinhar o terreno percorrido e verificar como as coisas se encadearam. É importante, de forma breve, tentar entender como o PT, ou pelo menos sua direção, chega aos dias de hoje.

Lutas dos anos 1970-80

O partido começou sua história como caudatário das formidáveis lutas operárias do ABC paulista, nos anos 1970-80. Recebeu influxos de militâncias de inúmeros movimentos sociais, entre eles o sindical e o estudantil, da Igreja progressista e de egressos da esquerda derrotada em anos anteriores, em especial de ativistas de grupos que foram para a luta armada. 

O PT não teve, em sua primeira década, um programa político claro. Organizava-se, na prática, como depositário de experiências variadas. Seus dirigentes à época repetiam que o programa seria definido “pela base”. Era uma forma de não provocar dissensões em um período favorável à união dos de baixo. 

A agremiação encarnou uma oposição difusa ao que se convencionou chamar de “Estado autoritário”. Essa oposição tinha razão de ser. O movimento sindical se opunha à lei de greve da ditadura, havia todo um arcabouço legal restritivo à organização popular e o aparato de repressão estatal reagia com brutalidade a qualquer contestação à ordem.

Tal comportamento não diferenciava muito o que eram iniciativas de Estado e o que se apresentava como resultado das ações de um regime montado a partir de uma determinada coalizão de classes. Na ditadura, Estado e governo não apresentavam marcos nítidos de distinção entre si.

A partir daí, criticar a ambos era quase a mesma coisa. E essa crítica, sem grandes formulações teóricas, ensejou uma peculiar leitura da História. De forma fragmentada, a contrariedade ao “Estado autoritário” deu curso a uma crítica histórica de duas vias.

A primeira ganhava corpo no ataque à “Era Vargas”, em especial à CLT e à organização sindical. A segunda se consolidava em uma ojeriza frontal aos comunistas. Alguns, teoricamente, verberavam contra um documento intitulado Declaração de Março de 1958.

Trata-se de texto polêmico. Em uma situação de profundo isolamento e clandestinidade, a direção comunista pregava a ideia de uma “união nacional contra o imperialismo”. Entrariam aí o operariado, o campesinato, as camadas médias e um setor do empresariado, que deveriam selar um pacto contra o latifúndio e o capital financeiro. 

Apesar de controverso, é um documento extremamente rico e contribuição positiva ao debate da época. Os grupos que saíram do PCB após o golpe de 1964, o classificam como uma elegia capitulacionista “à burguesia”. O argumento maior é que, na hora do perigo, os possíveis aliados bandearam-se para o lado da quartelada.

Os petistas oriundos dos grupos armados, nos primeiros anos, tratavam de esconjurar a Declaração de Março como o supra-sumo do que chamavam de “conciliação de classes”.

Precisamos falar da nação

Nesses primeiros anos, o PT desconsiderava o conceito de nação ou nacionalismo como algo que tiraria de cena o conflito de classes existente na sociedade. Assim, os documentos dessa época pouco falavam da importância de se reorganizar o Estado, que vem a ser a concretização objetiva do conceito subjetivo de “nação”.

No máximo, havia em letra de forma apelos contra privatizações de estatais, sem maiores decorrências. Se é verdade que o PT é fruto das lutas dos anos 1970-80, não é menos verdadeiro que a agremiação foi profundamente impactada pelo tsunami neoliberal dos anos 1990.

O impacto do pensamento único somou-se à queda dos regimes do leste europeu. O fim do ciclo histórico da bipolaridade mundial parecia comprovar a tese de que o PT bem fizera ao se distanciar do comunismo e das teorias que embalaram parte essencial das lutas populares no século XX. De quebra, apartar-se de regimes que viam no fortalecimento do Estado sua razão de ser.

Como nos anos da ditadura, opressão de classe e opressão do Estado se confundiam, ser contra qualquer um dos dois equivalia a ser contra o regime.

O neoliberalismo trouxe consigo um suporte teórico que tendia a exaltar a retirada do poder público da economia – o que na prática nunca se deu, no Brasil – em favor de um nebuloso conceito de “sociedade civil”. Não há nada a ver com a formulação gramsciana de sociedade civil. O que se dizia é que o partido não “tomaria” o poder, mas o construiria “a partir de baixo”.

A “sociedade civil”, na visão liberal, se compõe de indivíduos e suas organizações não “atreladas” ao Estado. Assim, estariam de fora sindicatos e partidos. Os representantes da sociedade seriam as Organizações Não Governamentais (ONGs) e uma miríade de organizações autodenominadas “autônomas”.

Sem querer, esse aspecto da teorização neoliberal encontrou em uma esquerda que fazia da pregação antiestado, antivargas e anticomunismo – sua pedra de toque.

O problema liberal

Embora sempre tenha se colocado em oposição ao governo FHC, o PT nunca foi claramente antiliberal na política. Não à toa que grandes pensadores que formularam a base do pensamento liberal brasileiro – em especial Sérgio Buarque de Hollanda e Raimundo Faoro – sejam também inspiradores de vários intelectuais petistas. A Fundação Perseu Abramo, vinculada ao PT, tem até mesmo o Centro Sergio Buarque de Hollanda de História e Documentação Política.

Como tem apontado Jessé Souza, SBH transplanta para o Brasil a tese cara ao liberalismo, a do Estado patrimonialista. É como se o centro dos problemas enfrentados por um país periférico e desigual como o Brasil estivessem no Estado e não nas classes sociais que o hegemonizam a partir de fora.

Assim, o giro à direita, empreendido paulatinamente pela direção petista a partir de 2003 não se deu por força de características como “burocratização”, ou adaptação a cargos ou coisas assim. Essa é a leitura rasa. Essa movimentação teve formulações que foram ganhando corpo ao longo do tempo, cuja melhor tradução é a “Carta aos Brasileiros”, de 2002.

Justiça seja feita, o liberalismo, a subestimação do papel do Estado como organizador da vida política, social e econômica vai muito além do PT, no campo da esquerda ou da centroesquerda. Adentram setores de partidos como o PSOL, o PSTU e o PCdoB.

O PT nunca teve um projeto mais profundo de Estado e sua democratização, o que implicaria pelo menos regulamentar alguns artigos da Constituição, como os do sistema financeiro ou das comunicações. Nunca aventou dar outro rumo para sua organização jurídico-institucional.

As formulações sobre um incerto “republicanismo” – visão na qual o aparato de Estado seria imparcial e comum a todos – vêm do liberalismo.

Assim, o círculo fecha sua quadratura. Tendo sua gênese na crítica ao encobrimento das classes sociais pelo conceito de nação, o PT – e parte da esquerda surgida a partir dos anos 1980 – chega à elisão das classes pela via de um liberalismo envergonhado, como teoria política, que relega o Estado como centro das disputas sociais.

Se a luta de classes ou conflito distributivo não existia, nenhuma disputa de hegemonia precisava ser feita nos 13 anos em que o petismo administrou o País. Tudo seria fruto de acordos, sem esforço ou lutas. ONGs, bancos, grandes empresas, movimentos sociais e indivíduos poderiam se entender no âmbito da sociedade civil. Parceiros em várias iniciativas estariam num jogo virtuoso em que todos só teriam a ganhar.

Bastava se entenderem. Até o dia em que a crise chegou pesada, escolhas tiveram de ser feitas, meu mundo caiu e a carruagem virou abóbora…

*Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC

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