Política

Impeachment: processo jurídico e/ou político?

Deputados e senadores são políticos, têm interesses políticos, mas a tomada de decisão deve ser jurídica

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O impeachment vem sendo cogitado desde o fim das eleições em 2014 e é o tema mais discutido no Brasil no último um ano e meio. O aumento de frequência dos debates sobre temas jurídicos, políticos, econômicos é positivo do ponto de vista democrático, pois mais cidadãos estão se integrando na vida do Estado, mas ao mesmo tempo a maior participação da sociedade também traz problemas, como a difusão de visões superficiais ou erradas sobre temas difíceis, técnicos e repletos de facetas.

Aproveitando o aumento do interesse e da participação da população no debate político, muitos meios de comunicação enviesam as suas matérias, buscando incutir ideias do seu agrado na cabeça das pessoas. Uma delas é a de que o impeachment é um processo político.

Essa ideia é errada. O impeachment não é como uma moção de desconfiança dos sistemas parlamentaristas, nem como o recall existente em alguns sistemas presidencialistas.

Muitos favoráveis ao impeachment têm defendido, com unhas e dentes, a perspectiva de que esse processo é político, julgado por um órgão político, que é o Congresso Nacional. Outros contrários ao impeachment buscam negar sua natureza política, focar na característica jurídica desse processo e, por fim, na inexistência de crime de responsabilidade.

Esses últimos estão mais certos do que os primeiros, apesar de nenhum deles estar apreendendo o tema em sua complexidade. O impeachment é um processo jurídico, mas dirigido por um órgão político, o que lhe dá característica política devido ao sujeito.

Em outras palavras, o conteúdo do processo é todo jurídico, mas os sujeitos, julgados e julgadores, são políticos, assim como o efeito da condenação, que, apesar de ser jurídico, também produz uma gravíssima consequência política e administrativa, a destituição do cargo, conforme art. 78 da Lei 1.079/1950.

O impeachment está definido na Constituição como o processo e a consequência de um crime, que é um conceito jurídico. Não pode haver impeachment sem a configuração de um crime comum ou de responsabilidade, sendo este último uma figura do Direito Administrativo, apesar de chamada de “crime”.

No entanto, o Código de Processo Penal é, segundo o art. 38 da Lei 1.079/1950, aplicável subsidiariamente ao processo de impeachment.

Por sinal, quase todo o vocabulário da referida lei é processual penal (denúncia, pronúncia, libelo, acusado etc.). O processo de impeachment tem, portanto, uma natureza híbrida, pois as normas conferem funções jurisdicionais a órgãos políticos, atividades indiscutivelmente de julgamento, de provocar efeitos típicos do Direito Administrativo, mas regido, em alguma medida, pelo Direito Processual Penal.

O art. 80 deixa claro que a Câmara dos Deputados, órgão do Poder Legislativo e com caráter político, funciona como um tribunal de pronúncia, aquele que admitirá ou não a denúncia e enviará ou não acusação para julgamento no Senado Federal (vide art. 23), que é o tribunal de julgamento, segundo o mesmo art. 80, devendo ser presidido, inclusive, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. 

Deste modo, ainda que a decisão seja tomada por políticos, eles precisam ser muito bem assessorados por juristas, tendo em vista que é preciso respeitar os conceitos do direito, a começar pelos princípios, como o da presunção de inocência e da adequação social.

A tomada de decisão dos deputados e senadores deve ser, portanto, jurídica. Eles são políticos, têm interesses políticos, podem até levar em consideração subconscientemente a crise política atual como um vetor na sua tomada de decisão, mas não podem, de forma alguma, decidir pelo impeachment se não houver claro crime de responsabilidade.

Aliás, devido à presunção de inocência que rege o Processo Penal, é preciso tomar extremo cuidado para não se condenar à sanção de impeachment um presidente da República simplesmente porque há interesses políticos por trás dessa decisão.

Diz-se que apenas há impeachment de um presidente com perda da base política, mas não estamos falando de um requisito jurídico. Mesmo que a maioria maciça do Congresso Nacional estivesse apoiando um presidente, para serem fieis à Constituição que prometeram guardar, deveriam fazer o seu impedimento, caso tivesse cometido um claro crime de responsabilidade.

O inverso também é verdade. Não é porque o presidente perdeu sua base política que deve haver impeachment, sobretudo se não existe a condição jurídica básica e primordial para essa consequência também jurídica.

Se a Constituição determina que apenas seja sancionado o presidente que cometeu crime de responsabilidade, não há que se analisar clima político; erros técnicos do presidente, como na condução da economia; questões criminais envolvendo terceiros, ainda que membros do governo; ou quaisquer outros aspectos que não digam respeito aos ilícitos prescritos na lei. Se crime de responsabilidade pelo presidente, então impeachment.

O art. 68 da Lei 1.079/1950 deixa isso ainda mais claro. Ele prescreve a forma de tomada de decisão, impondo que o voto pelos senadores será “sim” ou “não” em relação à pergunta sobre o acusado ter cometido o crime que lhe é imputado.

É claro que a configuração ou não de crime de responsabilidade é um processo interpretativo, que, aliás, precede qualquer aplicação de norma jurídica; então, dado que os tomadores de decisão são políticos, é possível que sejam influenciados por questões extrajurídicas, mas isso não está chancelado pelo direito. Qualquer razão que não diga respeito ao crime de responsabilidade é inconstitucional.

O lamentável é que a Constituição e a lei não deixam clara a necessidade de motivação do ato, que seria extremamente importante para que cada qual fizesse evidente como construiu a sua decisão pelo “sim” ou pelo “não”.

No processo de impeachment de Fernando Collor, deputados apenas respondiam “sim” ou “não”, sendo que alguns deles, ao seu gosto, apresentavam algumas palavras de ordem e razões genéricas, como: “pelo Brasil”, “pela Democracia” e afins.

Decisões sem motivação ajudam a deslegitimar o processo e permitem que cada um escolha um posicionamento conforme quaisquer razões que tiver.

A “interferência” do STF no impeachment

Por tais motivos, outra ideia errada é essa vendida por alguns de que o Supremo Tribunal Federal não pode “interferir” num processo político de competência do Congresso Nacional. O STF pode “interferir” em qualquer ato jurídico inconstitucional, desde que provocado para tanto.

Ele é o órgão que diz qual o direito brasileiro em última instância. É o competente para fazer todos os atos se coadunarem com a nossa Constituição.

No caso do processo de impeachment, amplamente regulado pelo direito, eventuais nulidades, como uma condenação sem clara existência de crime de responsabilidade, podem ser levadas ao crivo do Supremo, assim como dúvidas sobre a interpretação da legislação. Não se trata de “interferência”, termo que vem sendo usado, na maioria das vezes, com o fim de manipular o discurso. Trata-se de competência.

O termo “interferência” leva a um conceito de alguém agir onde não tem competência, atuar quando não lhe cabe. Apenas haverá interferência, contudo, quando o STF resolver modificar atos que são eminentemente discricionários, que não é o caso do impeachment, mas é o da nomeação de ministros.

Cumpridos os fins da nomeação, havendo posse e qualificação do ministro, se o STF modificar a decisão do Presidente, estará interferindo no Poder Executivo, definindo, no lugar do presidente, quem deve ou não se tornar ministro. O mesmo vale para a escolha de ministros do STF e do Tribunal de Contas da União.

A legislação é ruim ao regrar todos esses casos de nomeação, deixando espaço excessivo para os interesses políticos? Entendo que sim, mas essa é outra discussão a ser travada com urgência.  

O impeachment nada tem a ver com as referidas nomeações. É um processo jurídico minuciosamente regrado na Constituição e na lei. Evidente que o STF tem competência para anular um impeachment inconstitucional, do qual políticos se aproveitem, sob a falácia de estarem realizando um julgamento político, para afastar um presidente por não ser do seu interesse político, ideológico ou, pior, por não ser do seu interesse pessoal.

Conclui-se, portanto, que alguns indivíduos, com uma reverberação aguda pela imprensa, estão manipulando, por erro ou má fé, o discurso para convencer a sociedade, inclusive os membros do Congresso Nacional, de que o impeachment é um processo político, sujeito a escolhas políticas dos julgadores, e que não cabe controle pelo STF, enquanto que a nomeação de Lula como ministro seria um ato jurídico controlado pelo STF mesmo quando a sua finalidade mor não foi desviada.

Ambas as ideias são completamente falaciosas e desmentidas pelo sistema jurídico brasileiro.

O impeachment é 95% jurídico e 5% político, sendo esses 5% caracterizados pelo órgão onde o processo tramita e pelos sujeitos julgadores, que, apesar de políticos, assumem papéis transitórios de tribunais e juízes, respectivamente, ficando bem amarrados pelas regras de Direito Administrativo e Processual Penal prescritas na legislação, fazendo falta o dever de motivação adequada da decisão tomada por cada julgador, que deveria ser imposto no processo de impeachment com base no dever de motivação dos atos jurisdicionais e com efeitos administrativos.

Um presidente não pode ser destituído do cargo sem motivação clara e robusta. O processo de impeachment, como visto, reúne características dos três poderes e tem, também, um forte caráter jurídico-administrativo, dizendo respeito à destituição ou não de alguém que ocupa o cargo administrativo mais importante do país.

Em outras palavras, as decisões dos membros do Congresso poderão ser em maior ou menor medida influenciadas por aspectos políticos, tendo em vista que eles são políticos afiliados a partidos políticos e, portanto, repletos de interesses que nem sempre são os mais republicanos ou democráticos.

No entanto, o sistema jurídico brasileiro determina que a decisão seja por responder tão somente a “sim” ou “não” a respeito da clara configuração de um crime de responsabilidade, resposta esta que deveria, por imposição de regra estabelecida previamente, vir acompanhada de motivação.

*Marcos de Aguiar Villas-Bôas, doutor pela PUC-SP, mestre pela UFBA, é conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda e pesquisador independente na Harvard Law School e no Massachusetts Institute of Technology

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