Política

O espírito da ditadura não morreu para Maria Rosaria Barbato

Professora italiana de Direito da UFMG é intimida por estar “militando em sindicatos e partidos”; restrições foram criadas em Decreto-Lei de 1969

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No passado 5 de Maio, um amigo brasileiro que também possui cidadania italiana e faz pós-graduação na Inglaterra publicou uma foto dele no posto onde votou nas eleições locais, em uso de seus direitos políticos nesse país.

Em contraste, cinco dias depois, em Belo Horizonte, a Polícia Federal intimou a professora da Faculdade de Direito da UFMG, Maria Rosaria Barbato, de nacionalidade italiana, por fazer uso de direitos políticos neste país militando em sindicatos e partidos.

As proibições aos estrangeiros no Brasil e sua forma expedita de expulsão são feridas ainda abertas dos anos de chumbo da ditadura militar. As restrições descritas no Decreto-Lei 941 de 1969, promulgado nos primeiros meses de vigência do infame Ato Institucional 5 de 1968, foram mantidas até hoje no Estatuto do Estrangeiro vigente, Lei 6815 de 1980, também promulgada em ausência de democracia.

Essas normas refletiam a percepção que a ditadura tinha dos estrangeiros. Por um lado constituíam potencial ameaça à “segurança nacional”, entenda-se ao regime militar, por questionarem o que estava acontecendo.

De outro lado, considerando que esse período coincide com a Guerra Fria, estrangeiros poderiam trazer ideologias consideradas perigosas. Por último, não há que esquecer que as ditaduras da América do Sul tinham acordos de repressão cruzada aos opositores na aliança tristemente conhecida como Operação Condor. 

Caiu a ditadura brasileira em 1985, entrou em vigor a Constituição Cidadã em 1988, caiu o Muro de Berlim em 1989, mas o espírito dos anos de chumbo e da guerra fria do Estatuto do Estrangeiro seguem vivos entre nós.

Quando cheguei ao Brasil, 15 anos atrás, a Polícia Federal em São Paulo funcionava num edifício deteriorado na região da Luz. Eu lembro que para mim foi estranho ver que eles usavam computadores com monitores de fósforo verde quando o resto do planeta usava monitores coloridos com Windows 98.

As filas eram intermináveis e os funcionários escassos e sobrecarregados. Uma experiência radicalmente diferente de quem visita hoje o moderno prédio da Polícia Federal de São Paulo, que já foi visto tão frequentemente no noticiário.

As mudanças acontecidas nos últimos governos não foram limitadas a uma Polícia Federal que obteve recursos e se automatizou nos últimos treze anos. A visão sobre o estrangeiro foi modernizada também. Tive oportunidade de presenciar e escutar de amigos como a atitude dos funcionários desse órgão para com os estrangeiros mudou e tornou-se mais compreensiva.

Em termos de legislação, tivemos uma anistia que permitiu acolher centenas de pessoas de outros países exploradas em condições análogas à escravidão e foi colocado em prática o Acordo de Residência de Mercosul e Associados que abriu oportunidades sem fronteiras tanto aos cidadãos brasileiros como aos de outros países que fazem parte do acordo.

Esses ganhos promovidos na Polícia Federal e nas normativas devem ser preservados. Mas ainda, a criação de uma verdadeira lei de migrações é dívida histórica do Brasil e não foi priorizada por  nenhum dos governos democráticos após a ditadura.

A nacionalidade é para a maior parte das pessoas um assunto incidental relacionado com seu nascimento e o nascimento de seus progenitores. Ninguém pediu para ganhar a nacionalidade que obteve ao nascer. Simplesmente acontece.

A qualidade de nacional ou estrangeiro, na prática, pode ser algo tão irrelevante que tenho dezenas de amigos que ostentam a cidadania italiana e podem votar nas eleições desse país sem saber como manter uma conversação em italiano ou ter colocado os pés no solo desse país europeu.

E não estão errados em procurar se fazer cidadãos italianos para obter certas vantagens. O errado é que as oportunidades sejam negadas às pessoas por causa de sua nacionalidade incidental. Não podemos limitar como estrangeiro a quem por acaso nasceu longe, devemos acolher ao migrante como ser humano com plenos direitos.

Entre as oportunidades que qualquer ser humano deveria ter, independentemente de onde nasceu ou onde nasceram seus progenitores, é de migrar e se estabelecer onde preferir, construir uma vida e participar ativamente de sua comunidade, inclusive da política.

De fato, estrangeiros residentes em cidades colombianas, inclusive brasileiros,  votam nas eleições municipais desde 2007. Algo análogo parece que não acontecerá tão cedo no Brasil.

Neste tempo turbulento, vi o que não tinha visto nestes quinze anos anteriores no Brasil. Sempre me senti acolhido. Mas pessoas de meu entorno que sabiam que tinha nascido em outro país me advertiram da vigência do Estatuto do Estrangeiro promulgado pela ditadura. Alguns porque queriam meu bem e viam a mudança de maré. Outros porque queriam silenciar minha voz.

Curiosamente, muitos desses defensores ocasionais da repressão aos estrangeiros são eles próprios filhos ou netos de migrantes ou querem migrar ou que seus filhos migrem. Mas imbuídos de ódio, não toleram ninguém que pense diferente. Como no Brasil dos militares do “Ame-o ou Deixe-o”.

Eu escolhi ser brasileiro. Não foi incidental. Foi para exercer meus direitos políticos. Não vou calar. E escrevo aqui para denunciar que o espírito da ditadura não morreu para a professora Maria Rosaria Barbato. E segue vivo para  reprimir muitos outros seres humanos, tenham ou não a nacionalidade brasileira.

 

Ricardo Palacios é médico, brasileiro naturalizado e estuda Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. As opiniões expressadas neste artigo não representam a posição de instituição alguma.

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