Política

“Punição aos delitos tem de ser mais imediata”

Procuradora vê com receio o surgimento de projetos de lei que podem indicar uma reação da classe política à Lava Jato

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Procuradora regional da República em São Paulo, Janice Ascari é uma das integrantes da força-tarefa que auxilia o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, nas investigações da Operação Lava Jato.

Especializada na área criminal, em que atua há mais de duas décadas, Ascari vê com preocupação a movimentação de congressistas para apresentar e analisar projetos que dificultam o trabalho do MP e ampliam o número de instrumentos jurídicos à disposição de investigados por corrupção, em grande parte parlamentares.

Em meio a inúmeros rumores de que a saída da crise atual passa por um contra-ataque dos políticos ao sistema investigativo e por um acordão para melar a Lava Jato, Ascari faz um alerta sobre a movimentação em Brasília. “A única forma de você impedir o MP de investigar é por meio de alguma lei”, diz. “Com as ferramentas de trabalho que temos hoje, não seria a mudança do presidente que brecaria o MP”.

Confira a íntegra da entrevista:

CartaCapital: Quando a Lava Jato é colocada em um contexto histórico muitas vezes ela aparece como a terceira parte de uma tríade iniciada com a Satiagraha e com a Castelo de Areia, que acabaram anuladas pela Justiça. Já é possível dizer que o desfecho da Lava Jato é diferente?

Janice Ascari: Com certeza. Vários processos foram terminados, ao menos em primeira instância. Houve condenações, há muitas denúncias em andamento, já há uma parte da Lava Jato no STF. Então não vai ter o mesmo destino dessas operações, que eram bem menores.

CC: O que mudou desde a Satiagraha e a Castelo de Areia, a investigação ou ambiente institucional no Brasil?

JA: Um pouco de cada coisa, mas o principal fato foi a maior especialização da investigação e a criação das estruturas para essas investigações. A Satiagraha e a Castelo de Areia funcionavam no sistema tradicional, com um procurador, no máximo dois ou três, com um delegado e uma equipe pequena.

Na Lava Jato, por se mostrar algo tão imenso, foi necessário que se fizesse uma força-tarefa em Curitiba que engloba Polícia Federal, Receita Federal, Coaf. São vários órgãos trabalhando juntos. E quando começaram a aparecer as primeiras autoridades, parte da Lava Jato se deslocou para o STF, e uma segunda força-tarefa foi criada, sob as ordens do procurador-geral da República.

CC: Analistas italianos afirmam que a Operação Mãos Limpas, referência para a Lava Jato, promoveu uma espécie de corrupção 2.0, porque os políticos conseguiram aumentar sua própria imunidade por meio de projetos de lei. A senhora vê esse risco no Brasil?

JA: Vejo, pois há vários projetos em andamento nesse sentido. E toda semana surgem novos projetos para dificultar a investigação criminal ou o processo como um todo. Cito dois especificamente:

O STF, até 2009, tinha um entendimento de que quando um processo é julgado em primeiro grau e a sentença é confirmada em segundo grau, se poderia fazer a execução provisória da pena, porque os recursos que cabem não têm efeito suspensivo. Em 2009, o Supremo mudou esse entendimento. Enquanto houvesse um recurso cabível, e os recursos são muitos e sem limites, não haveria execução de pena.

Agora, em 2016, o Supremo reviu essa posição, voltando à orientação anterior. Na semana seguinte entrou um projeto proibindo a execução provisória da pena, que significa voltar a uma situação de impunidade.

Há também um projeto recente para que se proíba fazer acordo de delação premiada com quem estiver preso. Isso vem sendo falado muito na Lava Jato e repetido à exaustão, que o juiz Sergio Moro prendia as pessoas para forçar uma delação. Isso é mentira, porque 73% dos acordos foram feitos com réus soltos. Não é preciso estar preso para fazer uma colaboração, principalmente quem está bem assessorado por advogados e sabe até quantos anos pode pegar de prisão.

A colaboração é muito importante para a investigação porque sobre certas coisas só se pode ter uma visão completa pela visão de quem estava envolvido.

CC: A senhora não vê então coação no caso de uma delação acertada com uma pessoa detida?

JA: São coisas absolutamente diferentes. Se a pessoa está presa no início de um processo é porque foram reunidos os elementos para uma prisão preventiva. E esses requisitos, que estão no Código de Processo Penal, não têm nada a ver com a colaboração. Uma pessoa que está presa pode não fazer colaboração e uma pessoa que está respondendo um processo em liberdade pode colaborar. São institutos diferentes.

CC: Para críticos da decisão do STF houve uma diluição da presunção de inocência.

JA: Na minha visão, não houve. Na verdade, o Supremo voltou a uma posição anterior, exatamente para evitar o uso protelatório desses recursos. É muito difícil, e aí entramos na seara legislativa, que o Congresso faça, a não ser sob uma pressão social muito forte, leis que possam simplificar o processo. A ideia não é simplificar, é quanto mais recurso, melhor, buscando o número máximo de recursos porque contam com a lentidão da Justiça.

CC: Como a senhora avalia o PLS233, em discussão no Senado, que promove mudanças nos inquéritos civis públicos?

JA: Nesse projeto, a título de normatizar o inquérito civil público, eles acabam mexendo em partes importantes de um instrumento que foi pensado para o Ministério Público. Um dos aspectos é o prazo de duração da investigação, que varia muito. Você consegue imaginar a Lava Jato com prazo de duração?

E é preciso destacar que o inquérito civil público investiga, por exemplo, atos de improbidade, outros tipos de delitos administrativos. Esse projeto vai fazer o Ministério Público ficar de mãos amarradas.

CC: Alguns comparam esse projeto à PEC 37, derrubada na esteira das manifestações de junho de 2013.

JA: É por aí. Se a PEC 37 procurava proibir o Ministério Público na investigação criminal, o PLS 233 proíbe o MP, ou diminui as possibilidades do MP, na seara civil.

CC: A reforma do Código de Processo Penal, que pode mudar a forma como as investigações são feitas no Brasil, estava parada há três anos na Câmara. Em 26 de março, o presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), réu na Lava Jato, reabriu essa discussão. Como avalia esse debate?

JA: Existem alguns assuntos recorrentes que são arquivados e desarquivados, arquivados e desarquivados. Isso pode ser uma retaliação a todo o sistema de investigação criminal? Não sei.

Mas seria muito bom que o Congresso se debruçasse sobre o pacote das Dez Medidas Contra a Corrupção, que estão postas no Congresso, receberam 2 milhões de assinaturas de cidadãos. Seria bom se elas fossem rapidamente analisadas e votadas, até como um ato de boa vontade com a população, que apoiou essas medidas.

CC: Algumas das medidas receberam críticas…

JA: A ideia é essa mesmo, gerar debate. É uma sugestão de um projeto de lei de iniciativa popular e agora a seara é o Congresso. Quem acha que alguma coisa tem de ser modificada que apresente suas sugestões.

Mas, como eu disse, seria muito bom se fosse feito um esforço concentrado no Legislativo para essa votação, pois essas medidas, pensadas inicialmente pelos colegas da Lava Jato e que foram ganhando apelo popular, efetivamente simplificam a investigação, o processo, podendo não fazer com que seja tão forte essa sensação de impunidade, com crimes de uma, duas décadas atrás sendo julgados agora, alguns já prescritos. A punição aos delitos tem de ser mais imediata, sob pena de tudo se perder no tempo.

CC: Dá para crer que os dois milhões de assinaturas vão comover os congressistas?

JA: Eu quero acreditar, porque por trás de cada assinatura há um voto

CC: Nas Dez Medidas, só uma, a primeira, versa sobre transparência, apontada por inúmeros especialistas como ferramenta primordial para evitar a corrupção. O MP não se focou excessivamente nas punições ao propor essas medidas?

JA: A transparência é um dos preceitos da administração pública segundo a Constituição. Hoje temos várias leis, como a Lei de Acesso à Informação, que é recente, que têm funcionado satisfatoriamente. Talvez esse não tenha sido tanto o foco porque já há leis que estão funcionando. Hoje os tribunais, ministérios públicos, ós órgãos do Legislativos, entre outros, têm portais da transparência, com informações sobre vencimentos, diárias, verba de gabinete, coisa que não ocorria.

Há também o trabalho fantástico da CGU [a Controladoria-Geral da União], com informações sobre convênios, repasses de verbas etc. É bom que o cidadão brasileiro se acostume a acompanhar tudo isso, para se envolver, porque o dinheiro é público, é de cada um.

CC: Está sob estudo também a PEC 412, chamada de PEC da autonomia da Polícia Federal. O MP tem várias críticas a ela. Qual a sua opinião?

JA: A PEC não é da autonomia da Polícia Federal, mas dos delegados da Polícia Federal. Toda a polícia é contrária, exceto os delegados. Além de ter um viés nitidamente corporativo dessa classe de policiais, ela pretende afastar o controle externo, limar o Ministério Público das investigações e isso não é bom. O MP tem uma série de restrições a essa PEC, incluindo nota técnica da nossa associação.

Na verdade ela não reestrutura da Polícia Federal, mas isola os delegados da Polícia Federal, sob uma perigosa autonomia, no sentido não de independência, mas de falta de controle. E nunca é demais lembrar que a polícia está [na Constituição] no capítulo de segurança pública, junto com as Forças Armadas. É preciso avaliar até onde essa autonomia com significado de falta de controle é boa para o País ou não.

CC: Para muitos analistas, o impeachment é uma cortina de fumaça para aplacar os ânimos da opinião pública. A derrubada de Dilma seria uma forma de “entregar a cabeça para preservar o corpo”. A senhora vê essas especulações com preocupação?

JA: Com a experiência de 24 anos trabalhando no Ministério Público e sempre trabalhando na área criminal, vejo [com preocupação] em uma certa pedido pelo seguinte: a única forma de você impedir o MP de investigar é por alguma lei.

Com as ferramentas de trabalho que temos hoje, não seria a mudança do presidente que brecaria o MP, até porque nós somos proibidos de ter atividade político-partidário. O MP não tem viés político-partidário e investiga o que tem de ser investigado, independentemente de partido e de quem estiver no poder, seja governo municipal, estadual ou federal.

CC: Alguns analistas dizem que a mídia perderá o interesse na Lava Jato em caso de saída do PT do governo. Sergio Moro e procuradores reconhecem o importante papel da mídia na galvanização da opinião pública contra a corrupção. O MP terá força para seguir na eventualidade de a imprensa dedicar menos atenção à Lava Jato?

JA: Com certeza terá, até porque nós não pautamos a imprensa. Muitas vezes dizem: ‘não se fala no fulano, não se fala no beltrano’… Nós não temos controle sobre o trabalho de vocês. Assim como a imprensa também não nos pauta. Tendo elementos concretos recebidos de outros órgãos públicos ou de outras investigações, nós vamos fazer nosso trabalho, e não é a imprensa que vai dizer ‘MP faça isso, faça aquilo’.

Assim como o MP jamais vai chegar para um jornalista e dizer ‘publiquem isso, publiquem aquilo’. Nós temos processos hoje de 15, 20 anos, que ninguém fala mais e estão sendo tocados normalmente. São casos que já foram até manchete um dia, mas que deixaram de ser notícia, mas não deixaram de ser um processo. Essas ações vão continuar normalmente, independentemente de estar nas páginas policiais ou não.

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