Saúde

Estupradas por conhecidos são as que chegam mais tarde aos serviços de aborto legal

Especialistas destacam a urgência de acesso ao aborto seguro para vítimas de violência sexual e os desafios impostos por novas propostas legislativas

De 2016 a 2020, o SUS realizou mais de 870 mil procedimentos para tratar complicações de abortos malsucedidos. A presidente do STF deu o primeiro passo para reverter o tenebroso cenário – Imagem: Fernando Frazão/ABR e Arquivo/TSE
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Na última quarta-feira, 12 de junho, um homem foi preso suspeito de estuprar a própria filha de 17 anos, que estava internada por problemas respiratórios em uma UTI em São Paulo.

Em caso de uma gravidez decorrente dessa agressão e interrupção da gestação após as 22 semanas, a vítima poderia pegar uma pena entre 6 e 20 anos de prisão. Pena maior, inclusive, que a do próprio agressor, considerando que a pena máxima prevista para a prisão de um estuprador que não causa lesão corporal grave é de 15 anos.

Isso é o que propõe o PL 1904/24, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que equipara ao homicídio o aborto após 22 semanas de gestação. A proposta, inicialmente aprovada em regime de urgência pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, restringe o acesso aos três casos legalizados no país, de acordo com o Código Penal.

Por que a demora para realizar um aborto?

No Brasil, embora as mais jovens continuem sendo as mais propensas a realizar abortos tardios, o perfil que mais chega tarde aos serviços de aborto legal são mulheres vítimas de violência sexual por uma pessoa conhecida ou aparentada, afirma o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, que coordenou por mais de vinte anos o serviço referência de aborto legal do Pérola Byington. “Na minha experiência, poucas são as mulheres que chegam com mais de 22 semanas de idade gestacional, um percentual em torno de cinco, seis, sete por cento em relação ao geral. Mas é um percentual expressivo, importante.”

Entre 2015 e 2019, 67% das vítimas de estupro eram meninas com idades entre 10 e 14 anos. Sobre os agressores, 62,41% eram conhecidos das vítimas e, na maioria das vezes, a violência ocorreu na casa da vítima. É o que revelou o estudo Sem Deixar Ninguém para Trás – Gravidez, Maternidade e Violência Sexual na Adolescência, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) com a Fiocruz da Bahia.

De acordo com o médico, o efeito do agressor conhecido sobre suas vítimas, seja em forma de ameaça, pressão psicológica ou intimidação, é o fator mais importante para causar o atraso no procedimento. “A presença do agressor sexual no cotidiano, próximo a essa jovem, é um fator influenciador muito grande para postergar a revelação da violência, atrasar a revelação da gravidez decorrente dessa violência e impedir que qualquer medida seja tomada em relação a isso”, completa o ginecologista . Vítimas portadoras de transtornos intelectuais também são mais propensas a acessar o serviço de aborto legal tardiamente, uma vez que não compreendem o ocorrido, levando também ao desconhecimento da gravidez.

Conforme levantamento da GloboNews com base no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde, dos aproximadamente 5,5 mil municípios brasileiros, apenas 104 possuem serviços de aborto legal em unidades de referência. A desigualdade na distribuição dos serviços, a imposição ilegal de limites gestacionais e a carência de profissionais capacitados e infraestrutura adequada também são fatores que impedem as mulheres de realizarem o aborto mais cedo.

Outros motivos para o aborto tardio

No livro Gravidez Indesejada: O mais extenso estudo americano sobre as consequências de ter ou não acesso ao aborto, a demógrafa americana Diana Greene Foster destrincha alguns dos motivos pelos quais alguém demora a interromper a gravidez. Entre eles estão a demora na percepção da gestação devido à ausência de sintomas, a irregularidade dos ciclos menstruais, especialmente em mulheres mais jovens, e a obesidade. Segundo o estudo americano, 59% das mulheres que fizeram abortos tardios tinham menos de 25 anos, em comparação com 41% das mulheres que fizeram abortos no primeiro trimestre.

A descoberta mais surpreendente no estudo, diz ela a CartaCapital, foi o fato de algumas mulheres terem morrido por uma gravidez indesejada até o termo. “Eu sabia, com base em uma vasta literatura médica, que gravidezes levadas até o fim estão associadas a um risco físico muito maior do que realizar um aborto. Mas ter duas mulheres morrendo foi chocante. Isso realmente mostra que o acesso ao aborto é uma questão de vida ou morte para a pessoa grávida”, disse.

Questionada sobre o projeto brasileiro, Foster destaca que as mulheres que procuram abortos mais tarde na gravidez são muito semelhantes àquelas que o procuram mais cedo. “As pessoas não estão intencionalmente atrasando os cuidados; elas tentam realizar o aborto assim que podem. A ameaça de criminalização pode afastar os prestadores de ajudá-las, mas não mudará sua determinação de ter controle reprodutivo”, afirma.

Mas, por que após 22 semanas de gestação?

Hoje, no Brasil, não há limite gestacional para a realização de um aborto nos três casos legais. Apesar de desaconselhado pela OMS, a imposição de limites gestacionais é uma realidade em diversos serviços de aborto legal no país. De acordo com Greene Foster, isso se deve ao fato de que “muitas pessoas acreditam que, à medida que um feto cresce, também cresce seu direito à personalidade”.

O risco à vida da mulher relacionado ao aborto tardio também gera dúvidas. “O risco do aborto cresce à medida que a idade gestacional aumenta, mas, mesmo assim, se bem feito, de maneira qualificada, o aborto legal, em qualquer idade gestacional, tem um risco menor do que uma mulher atravessar todo o período de gestação, parto e puerpério no Brasil”, conclui Drezett.

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