Mundo

Donald Trump e a nau dos insensatos

Se republicanos propõem a opressão dos mais fracos e a destruição a vida pública, por que não se tornar fascista de uma vez por todas?

Apoie Siga-nos no

Parece a narrativa de um livro de George Orwell, mas é a realidade. Donald Trump – a estrela dos reality shows – tem grandes chances de tomar o assento que já pertenceu a George Washington, Abraham Lincoln e Franklin Delano Roosevelt. Ainda mais se sua adversária for Hillary Clinton, a qual atrai a desconfiança tanto da direita quanto da esquerda.

O observador atento da realidade norte-americana, porém, não tem nenhum motivo para se espantar. Poucas vezes um grupo de pessoas com tanto desprezo pelo bem público teve tanto poder quanto tem o Partido Republicano nos Estados Unidos desde meados do século XX. Trump é a mais perfeita encarnação do nonsense político que este partido promove há décadas.

Deve-se buscar as origens do Partido Republicano atual na reação (esta é sua palavra de ordem) ao New Deal de Roosevelt e ao movimento pelos direitos civis liderado por figuras como Martin Luther King Jr.

Para aqueles que sempre foram privilegiados – no caso norte-americano, os brancos da elite e classe média – o caminho para a igualdade traz o peso da opressão. Sendo assim, quando diferentes governos, respondendo à crise dos anos 30 e ao apelo de movimentos sociais, buscaram garantir emprego, educação e saúde para a maioria e acabar com a segregação racial que grassava pelo país, os privilegiados se rebelaram.

Esta rebeldia tomou a forma de mentiras, nutridas por um plano midiático de desinformação em massa.

Em meados do século XX, surgiu a ideia de que seguridade social é uma forma de tirar daqueles que trabalham duro e dar aos “vagabundos”. Não é difícil compreender como esta mentira foi manipulada, ora como instrumento contra organizações trabalhistas e outros membros da esquerda, ora como uma forma (mal disfarçada) de racismo.

Tal mentira criou raízes. Hoje os republicanos vivem a repetir que comunidades negras e latinas não merecem qualquer auxílio do Estado pois, destituídas da ética do trabalho, são as principais culpadas por sua própria pobreza.

Entre os anos 70 e 80, triunfou a trickle down economics. O governo de Ronald Reagan cortou impostos para os mais ricos sob a pretensão de que a medida criaria mais oportunidades para negócio e, consequentemente, mais empregos e melhores salários para todos.

No longo prazo, o maquiavelismo deu resultado: a concentração de renda aumentou, a classe média declinou e as camadas mais pobres foram excluídas de oportunidades de ascensão social.  

Pouco depois se fabricou a ideia de que os Estados Unidos, desde sua criação, são uma república fundamentalmente cristã. Os fundadores da pátria – em sua maioria deístas que acreditavam em um Estado laico – foram reinterpretados como fervorosos protestantes.

A Guerra Fria foi substituída pela “Guerra contra o Terror” e o espírito de cruzada se voltou contra o islã. Superando o belicismo de seu pai, o qual havia fabricado uma guerra contra o Iraque nos anos 90, George W. Bush usou a mentira chamada “armas de destruição em massa” para perpetrar um dos maiores crimes internacionais da história moderna.

Crime este que deu vida à verdadeira arma de destruição em massa que hoje se chama Estado Islâmico do Iraque e do Levante.

Na esfera doméstica, os republicanos passaram a pregar que a função única do Estado é proteger a propriedade privada. Ou seja, o governo deve fazer o que pode para guardar os altos muros que separam os guetos devastados dos subúrbios high-tech.

Forças policiais foram militarizadas e hoje, ao invés de servirem às comunidades pobres, aterrorizam-nas. As recentes mortes de Michael Brown, Sandra Bland e Eric Garner – todos negros, todos desarmados, todos nas mãos da polícia – mostram os efeitos mais perversos desta falsa ideia de bem-estar.

Ao mesmo tempo em que a vida pública era dilapidada, o consumismo foi elevado ao status de boa vida. Segundo os republicanos, o fato de qualquer trabalhador nos Estados Unidos poder comprar um carro ou um smartphone prova que o American Dream hoje é universal.

Pouco se fala, no entanto, que este American Dream obriga o pobre a trabalhar cada vez mais em piores condições, a ter cada vez menos tempo com a família e a aceitar a decadência da saúde, da educação e do lazer. Não por acaso, uma epidemia de doenças mentais e drogas toma o país.

Finalmente, forjou-se a ideia de que a ciência é um mero aparato ideológico dirigido contra o cristianismo e o capitalismo. O fato desta mentira ser algo risível no mundo moderno não incomoda os republicanos. A maioria deles nega a evolução das espécies e, em alguns Estados, estudantes são forçados a aprender a pseudociência denominada criacionismo.

Pior para a humanidade como um todo, os republicanos negam que a mudança climática seja causada pelo homem e que medidas urgentes sejam necessárias.

Esta, certamente, não é uma lista completa. As mentiras se multiplicam e evoluem a cada dia. Basta ligar a TV na Fox News por alguns minutos ou abrir uma página do Washington Times para se ter uma ideia da contínua insanidade dos republicanos.

(Cabe lembrar aqui que muitos democratas aceitaram tais mentiras. Foi Bill Clinton, por exemplo, quem aprovou a reforma criminal de 1994, que pune negros e pobres desproporcionalmente e gerou a maior população carcerária do mundo. Foi também Clinton que jogou a pá de cal sobre o estado de bem-estar social norte-americano em 1996. Tudo isso com o apoio de sua esposa, que chegou mesmo a chamar jovens negros de “super predadores.”)

Como é impossível construir um projeto político minimamente coerente sobre tal base, o Partido Republicano levou o país ao buraco. Desesperados e desinformados, muitos norte-americanos das classes média e trabalhadora abraçaram Trump nas primárias. Já que a política do Partido Republicano se tornou uma coleção de mentiras, por que não apoiar um mentiroso profissional como Trump? Já que os republicanos somente propõem a opressão dos mais fracos e a destruição a vida pública, por que não se tornar fascista de uma vez por todas?

Voilà! A nau dos insensatos tem hoje o comandante que sempre mereceu.

*Roberto N. P. F. Saba é historiador, doutorando em História Transregional na Universidade da Pensilvânia e pesquisa as relações entre capitalismo e escravidão durante o século XIX

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar